A relação entre Fisco e contribuintes, no mundo todo e em todas as épocas, envolve certa tensão. Salvo patologias, ninguém gosta de pagar tributo, e fiscal nenhum gosta de ver tributo sendo sonegado.
No Brasil, contudo, essa tensão já passou do limite do razoável há algum tempo e transformou, principalmente ao longo das últimas décadas, a relação Fisco x Contribuintes em algo doentio.
De quem é a culpa? Ora, como costuma ocorrer em qualquer relação de longo prazo que se desgasta, provavelmente dos dois lados.
Falemos primeiro de como o Fisco (ou o Estado brasileiro de forma mais ampla) vê o contribuinte. E vamos focar no Fisco federal para poder tornar a discussão mais abrangente.
Em primeiro lugar, o sistema tributário federal parte do pressuposto de que o contribuinte quer delinquir ou vai delinquir, vai deixar de pagar tributo de forma consciente e preordenada.
Não é razoável admitir que num país onde a legislação tributária é tão densa e complexa qualquer discussão sobre interpretação de lei, de decreto ou de instrução normativa (em se tratando de tributos federais) que seja iniciada pelo Fisco carregue uma multa não inferior a 75% do valor do tributo1. Num cenário em que a inflação anual não atinge em média nem 10% (estamos abaixo de 3% anuais atualmente), e com o Fisco aplicando juros sobre a própria multa, a justificativa não pode ser uma perda relevante de valor da multa no tempo. Por outro lado, um equívoco penalizado com ¾ do total do tributo devido deve ser um erro grave ou no mínimo grosseiro. Assim, ou a lei parte do pressuposto de que o contribuinte médio é um gênio de quem não se esperam equívocos, ou parte do pressuposto de que o sistema é simples e de fácil aplicação, não demandando grande esforço ou estudo. Obviamente nenhuma dessas duas hipóteses para de pé. A alternativa que resta é a pior: a de que a norma foi edificada sobre a premissa de que o contribuinte vai deixar de recolher tributo de forma dolosa e, portanto, será desestimulado por uma multa alta. Qual a falha grotesca dessa abordagem? O óbvio fato de que o sistema é complexo e os contribuintes erram muito na aplicação das regras. Aliás, o fisco também erra muito na sua interpretação, às vezes com um viés tão ou mais claro de arrecadação do que o viés de não-pagamento que ele busca coibir. A consequência disso tudo é evidente: não se discute tributo federal no Brasil sem que esteja em jogo uma penalidade quase equivalente ao valor do próprio tributo, não importa o quão simples seja a questão posta a debate.
Em segundo lugar, os agentes fiscais não têm qualquer pudor de tratar o contribuinte como criminoso.
Menos razoável ainda do que o ponto anterior é perceber que as multas “qualificadas”, utilizadas pelo Fisco quando este entende que o contribuinte agiu com dolo, simulou ou fraudou, cheguem a 150%2 e sejam utilizadas como se fossem algo “normal”. Aliás, como se fosse pouco, as fiscalizações onde a multa qualificada é aplicada também geram as Representações Fiscais para Fins Penais, já que identificam, teoricamente, a prática de crime tributário.
O Plano Anual de Fiscalização da Receita Federal do Brasil para 20173, que trata também dos resultados de 2016, deixa bem evidente a facilidade com que são aplicadas multas qualificadas e emitidas Representações Fiscais para Fins Penais. Segundo o relatório, entre os anos de 2012 e 2016, inclusive, essa situação se verificou em cerca de 2.400 casos, no ano em que houve menos casos (2016) até mais de 5.000 casos, em 2013. O percentual destes casos em relação ao total de fiscalizações variou de 26% a 28,5% do total das ações fiscais nestes cinco anos, mostrando-se bastante estável4.
Qual é a conclusão? Mais de um quarto das ações fiscais federais termina com a afirmação, pela fiscalização, de que o contribuinte é um criminoso.
No caso das ações fiscais relativas a planejamento tributário, esse percentual é certamente maior. Embora o dado não esteja disponível no relatório, é corriqueiro encontrar a multa qualificada presente em praticamente todas as autuações relativas ao que a Receita Federal chama de “planejamentos tributários abusivos”.
Ora, planejamento tributário é algo que, por definição, ocorre onde a lei não dá um tratamento claro para uma determinada situação. Se a lei é clara em dizer que algo é tributável, não pagar tributo será sonegação. E, se diz claramente que algo não é tributável, não pagar o tributo será mero cumprimento da lei. No preto, ou no branco, portanto, não se faz planejamento tributário, é na “zona cinzenta” que se faz.
Se é em situações de difícil interpretação que ocorre o planejamento, mais uma razão para que nestes casos se facilite o debate e o alcance de soluções não-contenciosas, certo? Bom, na cabeça do Fisco federal brasileiro, errado. Como já se disse, praticamente todos os casos de autuações envolvendo planejamentos fiscais terminam com uma multa qualificada de 150% aplicada e o contribuinte sendo chamado de “criminoso”.
Há pouco tempo, num julgamento de um caso de planejamento em que atuei, um Conselheiro do CARF afirmou que a multa qualificada é ainda mais justificada no caso de grandes empresas, que têm funcionários muito qualificados e contratam consultores e advogados também qualificados, portanto muito capazes de saber que a tributação deve ocorrer. Completa inversão de valores: em vez de considerar que estes funcionários, consultores, advogados, podem trabalhar e trabalham pela redução da carga tributária da empresa (provavelmente foram contratados para isso), assume-se como verdade que eles só podem trabalhar pelo aumento de carga tributária e que, portanto, qualquer atitude em sentido contrário é dolosa, deliberada, criminosa, enfim.
Em terceiro lugar, e por último, o CARF também tem adotado posições que tratam os contribuintes como se fossem delinquentes contumazes.
De fato, muito que se falou acima sobre os planejamentos tributários e a forma como são tratados pela fiscalização se aplica também ao CARF. Nem tanto nas Câmaras baixas, onde a análise tem sido mais detalhada e muitas vezes mais razoável, pautada nas circunstâncias dos casos concretos, mas principalmente na Câmara Superior, onde o número de casos julgados contra o contribuinte tem sido assustador. A CSRF tem funcionado como um “núcleo de resistência” do Fisco para defesa de determinadas teses, inclusive restabelecendo, em muitos casos, multas qualificadas que foram derrubadas pelas Câmaras baixas.
De outro lado, os contribuintes também não são santos, longe disso. No extremo, a quantidade de ilícitos tributários identificados recentemente pela RFB nas fiscalizações associadas às operações da Polícia Federal, como a Operação Lava-Jato, a Zelotes e outras, já mostra um lado podre da prática tributária brasileira.
Estes casos, entretanto, embora absurdos e claramente criminosos, muitas vezes não são motivados pelos aspectos tributários dos ilícitos. O tributário vai, por assim dizer, a reboque de crimes e irregularidades de caráter financeiro.
No que diz respeito a atitudes dos contribuintes que demonstram a intenção de se utilizar de subterfúgios e chicanas para sonegar imposto, um dos focos de fiscalização que o Plano Anual de Fiscalização da Receita Federal do Brasil para 2017 menciona é, por exemplo, o de empresas que se utilizam de forma claramente irregular da tributação pelo Simples. Trata-se de casos em que as empresas são colocadas, muitas vezes, em nome de parentes ou amigos, ou ainda casos em que uma atividade única de fato é segregada em várias pequenas unidades apenas para fins de utilização do benefício da tributação reduzida, mas sem qualquer substância.
Outros focos do Plano de Fiscalização que são de cunho exclusivamente tributário, e que miram atitudes claramente preordenadas e dolosas (na média) dos contribuintes são as de reporte de rendimentos a menor, tanto por pessoas físicas quanto jurídicas, ou de simples falta de recolhimento de Imposto de Renda por meio do Carnê-Leão, no caso de profissionais liberais. A RFB identificou que, em decorrência de uma operação específica de fiscalização deste tipo de rendimento em 2016, houve um acréscimo espontâneo de arrecadação desta natureza da ordem de quase 200%5, e isso num ano de crise!
Atitudes como estas dos contribuintes não ajudam em nada para distender a relação com o Fisco. Pelo contrário, dão argumentos a quem sustenta que as políticas de fiscalização (e com elas a legislação) devem mesmo ser baseadas numa relação de “polícia e ladrão”.
Ao longo das últimas duas décadas, esse ambiente ruim e de falta de diálogo já minou, por duas vezes, oportunidades que se colocaram para que Fisco e contribuintes construíssem espaços de debate mais abertos e menos antagônicos sobre as questões de alta indagação no Direito Tributário.
A primeira oportunidade perdida veio no ano de 2002. A MP 66, além de trazer a sistemática não-cumulativa para o PIS e várias outras regras, também estabelecia, nos artigos 13 a 19 da sua redação original, os “Procedimentos Relativos à Norma Geral Anti-Elisão”. A ideia era regulamentar a aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN, que havia sido incluído pouco tempo antes.
Não é possível dizer que houve um verdadeiro debate sobre o tema, nem antes, nem depois de editada a norma. O que houve, de fato, foi uma conversa de surdos, em que nenhum dos dois lados realmente escutava o que o outro lado tinha a dizer. O Fisco não ouviu os contribuintes antes de propor a redação da norma, e fez inserir no texto termos e expressões que, de partida, seriam extremamente problemáticos e aumentariam a insegurança ao invés de resolvê-la, como “falta de propósito negocial” e “abuso de forma”, com conceituações absolutamente abertas. Por outro lado, as regras tinham o mérito de estabelecer um procedimento formal de desconsideração, o qual, ainda que muito resumido e sem grande possibilidade de recurso, permitia ao contribuinte, pelo menos, explicar-se e expor seus motivos sem qualquer aplicação de penalidade, num primeiro momento.
O que fizeram os contribuintes? Fecharam os ouvidos e os olhos e lançaram-se a uma guerra doutrinária, de livros e pareceres, para sustentar a posição de que este tipo de norma era absolutamente inviável, porque inconstitucional, no Brasil. Pois bem, pressão feita, pressão sentida pelo Congresso Nacional, que retirou do texto da Lei de Conversão (Lei 10.637/2002) os artigos todos sobre o assunto. Com isso, foram pelo ralo os conceitos controversos, mas também o embrião de procedimento que poderia ter sido estabelecido para discussão de temas controversos, em especial de planejamentos tributários, entre Fisco e contribuintes.
A vida seguiu, como é de se esperar, e a jurisprudência administrativa se encarregou de fazer aquilo que a MP 66 não conseguiu. Hoje em dia, os planejamentos tributários são analisados pela fiscalização e julgados pelas instâncias administrativas com base em conceitos tão ou mais fluidos do que aqueles que a MP mencionava, e sem nenhum espaço para debate entre Fisco e contribuintes que não envolva, no mínimo, a multa de ofício de 75%. Na verdade, como se viu acima, hoje em dia os planejamentos tributários são no geral “premiados” com multas qualificadas, de 150%. Vejam que avanço extraordinário!
A segunda oportunidade perdida veio muito mais recentemente, com a tentativa do Fisco de implementar, no Direito interno, o Plano de Ação de no. 12 do BEPS – Base Erosion and Profit Shifting, iniciativa conjunta da OCDE e do G-20. O Plano de Ação no. 12 do BEPS opera por meio das chamadas “Regras de divulgação obrigatória” (“mandatory disclosure rules”) que, em resumo, obrigam os contribuintes a, presentes determinadas circunstâncias, informar antecipadamente ao Fisco que existe uma situação qualquer que pode ser entendida como um planejamento tributário, o qual deve ser analisado.
Pois bem, uma vez mais, Fisco e contribuintes “ganharam” (em oposição a “criaram”) a chance de estabelecer um espaço de debate para questões controvertidas de tributação e, também uma vez mais, a mentalidade de “polícia e ladrão” impediu qualquer avanço.
A redação da MP 685/2015, artigos 7º a 13, tratou do tema de maneira absolutamente coerente com a “relação desgastada” de que fala este artigo, ou seja: o Fisco fez inserir, uma vez mais, menção a “atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributos”, quando “não possuíssem razões extratributárias relevantes”, “a forma adotada não for usual”, “utilizar-se de negócio jurídico indireto” ou “contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico”. Estes eram os casos em que os contribuintes eram obrigados a informar o Fisco sobre suas operações.
É irreal imaginar que, com termos e expressões como estas, muito semelhantes, mas até mais duras, do que as utilizadas na MP 66, os contribuintes tivessem qualquer verdadeiro incentivo para se apresentar ao Fisco dizendo: “suprimi tributo por ter realizado um negócio sem motivação extratributária relevante”, por exemplo.
De novo, tal qual ocorrera na MP 66, as regras estabeleciam um procedimento para debate entre Fisco e contribuintes, nos casos abrangidos, sem imposição inicial da multa de ofício, o que já era um avanço. Também de forma semelhante, esse procedimento era bastante limitado e não contemplava direito a qualquer recurso.
Os contribuintes, por seu turno, ao invés de tentarem se organizar para aproveitar a oportunidade e melhorar o texto da MP (o que foi até inicialmente proposto, diga-se) preferiram agir, novamente, como “guardiões” de uma pretensa constitucionalidade que impediria regras como estas no Direito brasileiro.
O resultado da radicalização da posição do Fisco, de um lado, e da radicalização da reação dos contribuintes, de outro, era óbvio: não se criou qualquer regra, boa ou ruim, completa ou incompleta. Permanece a mentalidade do Fisco de criminalizar os planejamentos tributários, cada vez mais, e dos contribuintes de evitar qualquer conversa sobre o tema, ao argumento de que a Constituição brasileira garante o direito ilimitado ao planejamento tributário e à auto-organização.
Por tudo isso, é necessário que se crie, por iniciativa de um dos lados, ou dos dois, de preferência, um espaço de debate, e que se converse abertamente sobre um procedimento que efetivamente diminua o contencioso tributário, em especial naqueles casos onde há verdadeira controvérsia interpretativa, ou faltam regras específicas que sejam claras. Não é possível continuar nessa escalada de posições radicais e antagônicas.
O Sistema Tributário é um só para Fisco e contribuintes, e foi criado para que a carga tributária seja corretamente repartida conforme os princípios constitucionais. Não foi criado para isentar, nem para criminalizar ninguém. Temos todos, Fisco e contribuintes, que fazê-lo funcionar!
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1 Multa de ofício definida pelo artigo 44, inciso I da Lei 9.430/1996.
2 Multa agravada conforme artigo 44, parágrafo 1o da Lei 9.430/1996, aplicável aos casos de sonegação dolosa, fraude ou conluio.
3 Disponível em https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-de-fiscalizacao-2017-e-resultados-2016.pdf.
4 Dados constam do item 13 do documento, páginas 23 e 24.
5 Item 5.8, página 36 do documento.
Autor: Roberto Salles Lopes – Mestre em Direito Público pela UERJ. Doutor em Direito Tributário pela UFMG. Advogado militante, sócio de Fialho Salles Advogados