Recentemente fizemos breves considerações sobre a Lei Complementar n° 173, de 2020, relativas às disposições dos artigos 8º a 10. Agora a discussão recai sobre o verdadeiro alcance do artigo 42 da Lei Complementar nº 101, de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que teve seus efeitos suspensos pela referida Lei 173. Observe-se bem que, ao contrário do artigo 21, da LRF, que mereceu alterações de caráter permanente, o artigo 42 foi objeto de suspensão por período.
Recorde-se que aludido artigo trata da proibição de gastos nos últimos oito meses do mandato para os quais não existam recursos financeiros para enfrentá-los. Esse dispositivo, por sinal, tem sido o maior determinante de Pareceres Desfavoráveis às contas anuais de Prefeituras.
Tenho defendido insistentemente a jurisprudência da Casa que considera, no período de abril a dezembro do último ano de mandato, vedadas despesas para as quais não existam recursos financeiros. Não participo do entendimento de que a proibição só atingiria despesas criadas no período, abandonando-se as despesas inscritas em Restos a Pagar.
Esse entendimento remonta ao ano de 2000, quando da sanção da LRF, ocasião em que sustentamos que “o artigo 42 insere-se na seção da LRF que trata de Restos a Pagar, os quais, conforme conceituação da Lei 4320, de 1964 (art. 36) são as despesas empenhadas mas não pagas até 31 de dezembro. Assim, não há falar em Restos a Pagar sem o prévio empenho que as suporte orçamentariamente…”. “O artigo 42 enfoca a disponibilidade financeira, o ajuste entre compromissos e fluxo de caixa, enfocam, eles, o desembolso a saída de dinheiro público, o pagamento enfim…” (in TOLEDO Jr., Flávio Correa de; ROSSI, Sérgio Ciquera; Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada artigo por artigo, 2ª Edição, NDJ, páginas 223 e 224, julho de 2002).
Pois bem. Havemos, portanto, de avaliar os efeitos da já aludida suspensão do artigo 42.
A LC nº 173, de 2020, em seu artigo 7º, repita-se, incluiu alterações significativas na LRF, e uma delas está assentada no inciso II do § 1º do novo artigo 65 ao dispor que:
“Art. 65 – …
§ 1º – Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos incisos I e II do caput:
I – …
II – serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública”
A controvérsia que se instalou é se os recursos arrecadados só poderão ser gastos no combate à pandemia ou haverá certa liberdade na sua destinação.
A LC n° 173, de 2020, fixa as seguintes condições:
- Instituição, nos termos do artigo 65, da Lei Complementar n° 101, de 2000, de programa de enfrentamento ao Coronavírus-SARS-CoV-2 (COVID-19) com duração exclusiva para o ano de 2020.
- Durante o estado de calamidade pública ficam afastadas e dispensadas as disposições da referida Lei Complementar e de outras leis complementares, leis, decretos, portarias e outros atos normativos que tratem:
“Art. 3 – ….
I – …
II – …
§ 1° O disposto neste artigo:
I – aplicar-se-á exclusivamente aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento deste Programa ou de convênios vigentes durante o estado de calamidades…
A leitura isolada e depois conjunta desses dispositivos deixa claro que a Lei Complementar n° 173, de 2020, produzirá efeitos exclusivamente no exercício de 2020 e em princípio por conta do estado de calamidade decretado.
À primeira vista, a interpretação que se faz é de que os benefícios da dispensa das exigências do art. 42 só prevalecerão nos gastos com o enfrentamento da pandemia. Acho que não!
Antes de mais nada, não será tarefa fácil a identificação dos gastos diretos e indiretos decorrentes da COVID-19 e depois porque, em verdade, esse Programa não está destinado somente à luta contra a doença.
Não se pode perder de vista que, com avassalador aumento de casos, o noticiário da Imprensa informava que a União prestaria socorro financeiro a Estados e a Municípios, ante o quadro econômico caótico que se desenhava. Daí o auxílio financeiro destinado pela LC n° 173, de 2020.
Diz o artigo 5º dessa Lei que:
“Art. 5º – A União entregará, na forma de auxílio financeiro, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em 4 (quatro) parcelas mensais e iguais, no exercício de 2020, o valor de R$ 60.000.000.000,00 (sessenta bilhões de reais) para aplicação, pelos Poderes Executivos locais, em ações de enfrentamento à COVID-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros, da seguinte forma: …”
Vê-se, portanto, que o auxílio financeiro tem dois destinos: um para o combate da pandemia e outro para a mitigação de seu efeito financeiro – em poucas palavras, a perda de arrecadação.
Essa regra significa que a prioridade é em favor da pandemia, mas, ao tratar da mitigação de seus efeitos, autoriza a utilização para qualquer outra despesa e aí cabe a liquidação de Restos a Pagar e despesas contraídas nos últimos oito meses de mandato.
Isso é pura lógica, ou seja, se o Município aplicou adequadamente os recursos destinados a ações de saúde e assistência social, e se há sobras e não há preceito legal determinando a devolução, é evidente que o gasto fica no âmbito do poder discricionário do responsável.
Daí porque estabelecer o inciso II do §1° do artigo 3º que após o término do período de calamidade pública a Administração não poderá se eximir “das obrigações de transparência, controle e fiscalização referentes ao referido período, cujo atendimento será objeto de futura verificação pelos órgãos de fiscalização e controle respectivos, na forma por eles estabelecida”.
É aqui que o Tribunal de Contas exercerá sua elevada missão de controle externo.
A avaliação das medidas tomadas para o enfrentamento da pandemia deverá centrar-se na verificação da disponibilidade de leitos e de aparelhos, no tratamento em domicílio e principalmente no número de óbitos, bem assim que os mais necessitados tenham o merecido atendimento mínimo à sobrevivência, dentre os quais cestas básicas, medicamentos e afins.
Satisfeitos esses cuidados, a Administração estará liberada para a utilização do que lhe tenha sobrado, privilegiando a quitação de compromissos, evitando o aumento do endividamento e a realização de despesas nos últimos oito meses do ano que se mostrem absolutamente imprescindíveis, ainda que não disponha dos necessários recursos, apoiados na suspensão das consequências decorrentes do artigo 42, da LC n° 101, de 2000.
Essa posição é de caráter puramente pessoal e sem qualquer vinculação às decisões que vierem a ser proferidas pelo Tribunal.
Autor: Sérgio Ciquera Rossi é Secretário-Diretor Geral do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)
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