A chamada Lei da Liberdade Econômica traz inovações jurídicas consideráveis e sem precedentes na história de nosso ordenamento jurídico no que tange ao tema das posturas municipais, que ainda não foram devidamente analisadas seja na doutrina, seja na jurisprudência. Ao tratar da matéria, caminhamos, portanto, em terreno inóspito, dando um primeiro passo.
Nota-se que a Lei Federal n. 13.874, de 20 de setembro de 2019 se autoproclama como uma norma geral de Direito Econômico, como se verifica da literalidade do § 4º do artigo 1º. Vale dizer, ela se arvora na condição de norma geral no seio da chamada competência legislativa concorrente entre União, estados e Distrito Federal – e, sob o aspecto do interesse local, dos Municípios – como previsto no artigo 24 da Constituição Federal de 1988.
Afinal, o inciso I do referido dispositivo constitucional arrola o “direito econômico” no rol de matérias afetas à legislação concorrente. Em tal situação, o papel da União limita-se a estabelecer normas gerais (§ 1º), o que não exclui a competência suplementar dos demais entes federativos (§ 2º e artigo 30, I); inexistindo norma geral, a competência legislativa dos entes federativos é plena (§ 3º); advindo, contudo, a norma geral nacional, há a suspensão da eficácia das normas regionais e locais, no que forem elas contrárias (§ 4º).
A intenção expressa do legislador federal é a de que a Lei da Liberdade Econômica cumpra o papel de norma geral de direito econômico para o fim de vincular os demais membros da Federação, como se vê da literalidade do § 4º do artigo 1º do texto legal.
Analisaremos o tema apenas sob o aspecto da dispensabilidade de qualquer ato público para desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco. No essencial, tem-se duas regras primordiais em relação ao tema na Lei de Liberdade Econômica:
- No caso das atividades que não se enquadrem como de baixo risco para licenciamento: concessão tácita do licenciamento após prazo máximo fixado pela Administração Pública Municipal, dentro dos limites máximos do regulamento (art. 3º, IX e § 8º), salvo em matéria tributária (art. 3º, § 6º, I) ou se a solicitação for feita por agente público e outros indicados pela lei (art. 3º, § 7º), desde que, no caso dos municípios, trate-se de ato de licenciamento delegado ou derivado por legislação federal ou haja expressa adesão às regras das normas gerais pelo meio normativo adequado.
Nesse caso, parece-nos ter havido completo respeito do legislador federal em relação à autonomia legislativa dos demais entes federativos, sem que seja necessária muita polêmica.
A regra de concessão tácita de licenciamentos após determinado prazo somente é aplicável em se tratando de atos delegados ou derivados da legislação federal (em que não haveria que se falar de autonomia legislativa municipal) ou se houver adesão do município a tal sistemática.
Vê-se, portanto, típica norma geral que se harmoniza perfeitamente com a autonomia federativa e as peculiaridades locais. Se a previsão é adequada ou não, sob o ponto de vista do mérito, se trará riscos ou não, é outro tipo de análise.
Fato é que não se está a vincular a legislação local automaticamente, devendo haver a análise de conveniência e oportunidade, por parte das autoridades municipais competentes, sobre a viabilidade de aplicação de tais regras e sua incorporação ao ordenamento jurídico municipal.
O que desde já aclaramos é que a adesão a tais regras, a nosso ver, depende de previsão em lei municipal, não sendo o caso de veiculação por mero regulamento.
Ora, se há todo um arcabouço legal municipal regulando a matéria de licenciamento e o seu procedimento, somente por lei municipal poderia haver a modificação de tal procedimento, ainda que de forma sucinta, determinando a aplicação integral das previsões da norma nacional. Esclarece-se, portanto, que ela não é auto aplicável sem ser mediada por previsão em lei municipal.
- No caso de atividades econômicas de baixo risco: inexistência de licenciamento prévio com total liberdade de atuação (art. 3º, I e § 1º) com fiscalização a posteriori sobre o efetivo enquadramento – no que importa para os municípios – como atividade de baixo risco e sobre o cumprimento das normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público (art. 3º, II, “a”), urbanístico (art. 3º, V) e tributário (art. 1º, § 3º e art. 4º, IX).
Uma leitura extremada dos dispositivos em questão levaria ao entendimento de que toda a legislação municipal e estadual referente ao licenciamento de atividades que sejam contrárias ao que consta da Lei de Liberdade Econômica teve sua eficácia suspensa.
Uma tal interpretação produziria efeitos profundos em todo o setor de regulação de atividades no âmbito municipal. Basicamente, aplicar-se-iam integralmente as previsões dos artigos 1º e 3º da lei pertinentes.
Vale dizer: para as atividades de baixo risco seria vedada a exigência de prévio licenciamento para o funcionamento. As atividades de baixo risco devem ser definidas na legislação municipal e, caso essa seja omissa, aplicar-se-á a previsão do regulamento federal (e, na sua falta, resolução do CGSIM).
A total liberdade de atividade econômica para tais atividades, a nosso ver, não abrange a total liberdade de localização, dependente da legislação de zoneamento municipal, mas tal verificação seria feita a posteriori, juntamente com a fiscalização de outros aspectos, como o efetivo enquadramento da atividade como de baixo risco ou questões ambientais.
Trata-se, sem dúvida, de uma grande mudança de paradigma no aspecto regulatório nacional. Mas, também, de uma modificação normativa centralizadora e abrupta, posto não ter levado em consideração as previsões legais municipais, peculiaridades locais.
Portanto, não deixa de ser uma espécie de violência federativa, que só temos a lamentar num perceptível contexto de cada vez maior centralização e esquecimento dos compromissos federativos de 1988, isso sem que olvidemos que os reclamos da classe empresarial sobre as dificuldades burocráticas brasileiras é conhecida e reconhecida por estudos técnicos, sendo, portanto, um pleito meritório.
O que aqui se critica é a forma com a qual se impuseram modificações tão drásticas com desrespeito à autonomia legislativa dos demais entes federativos.
Os problemas que decorrem de uma interpretação extremada em prol da liberdade econômica centralizada em norma federal são de duas ordens: a) acerca de seu efetivo enquadramento aos limites da Constituição Federal e b) de práxis, a questão de como aplicar tais previsões diante de outros valores protegidos constitucional e legalmente.
Acerca de sua inconstitucionalidade, já existem algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) em trâmite junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), dentre as quais a que nos interessa é a ADI 6.156, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Há desde questões formais (como a falta de urgência e relevância que permitisse a veiculação da matéria por medida provisória, eis que a lei sob análise é fruto de conversão da MP 881/2019) à questões de fundo, como o superdimensionamento da livre iniciativa em menoscabo de outros valores constitucionais de mesma hierarquia, vários dos quais fundamentam o exercício do poder de polícia municipal que se consubstancializa na tradicional expedição do “alvará de funcionamento”, abolido para as atividades de baixo risco se aplicada a norma federal ipsis litteris.
Com isso haveria afronta ao Princípio Federativo como já afirmaram em artigo Walber de Moura Agra e Alisson Lucena.[1] Cremos que esse tipo de crítica é bastante adequada à previsão que analisamos na Lei da Liberdade Econômica: no mínimo, é bastante discutível se ela realmente se enquadra como “norma geral em matéria de direito econômico” ou se ultrapassou o “geral” para tornar-se o “específico”, o “único”, o “exauriente”; vale dizer, tudo o que contradiz a noção de “norma geral”.
Com isso, há chances de que seja ela declarada inconstitucional ou, quiçá, que tenha seu texto interpretado conforme à Constituição. Em especial, parece-nos, é problemática a previsão de aplicação de rol de atividades de baixo risco previstas em regulamento federal ou em ato subalterno de um comitê vinculado à Administração Federal, em inversão hierárquica que coloca uma “resolução infralegal de órgão federal” acima de uma lei municipal (sem que entremos na questão de ter sido ela colocada acima da Constituição Federal ao menosprezar o Princípio Federativo que é cláusula pétrea). Afinal, “[s]obre os temas de interesse local, os municípios dispõem de competência privativa.”[2]
Ficam dados alguns passos na reflexão que a Lei de Liberdade Econômica está a exigir em relação aos impactos na atividade de polícia administrativa municipal. A caminhada ainda será longa!
[1] In: MP da “liberdade econômica” é panaceia para o desmonte do Estado Social. In: Consultor Jurídico, Acesso em: 11 Jul. 2019, Disponível em: https://www.conjur.com.br/
[2] Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, 4 ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 872.
CARLOS RENATO CUNHA – Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Procurador do Município de Londrina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Professor da graduação na PUC-PR campus Londrina. Professor da especialização em Direito Tributário do IBET.
FÁBIO CÉSAR TEIXEIRA – Especialista em Direito Constitucional e em Direito Penal e Processual Penal. Procurador do Município de Londrina.
JOÃO LUIZ MARTINS ESTEVES – Doutor pelo programa de Doutorado da Pós Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho – UGF. Especialista em Filosofia Política e em Filosofia: História do Pensamento Brasileiro pela Universidade Estadual de Londrina – UEL Procurador do Município de Londrina atualmente ocupante do cargo de Procurador-Geral do Município.
Fonte: Blog do Jota.