Tecnologia tributária do Estado e dos contribuintes.

por Grupo Editores Blog.

 

Nos parece seguro afirmar que a tecnologia, quando criada e utilizada pelo bem da humanidade, seja uma de suas descendentes heroicas. Por vezes, contudo, o temor de que ela não seja utilizada para os melhores fins é flagrante, e quando isso acontece a relação entre fisco e contribuinte resta prejudicada.

 

A automação e a inserção de novas tecnologias nos mais diversos setores da economia vêm transformando as cadeias de produção a nível mundial. O evolver social vem sempre acompanhado de complexidades. Criam-se, com isso, novas categorias, novos modelos de negócios. Daí a necessidade de acomodar a tributação a tal realidade.

 

 

Um dos primeiros passos neste inter-relacionamento entre o operador jurídico e ferramentas tecnológicas ocorreu em 1973, com a instituição do programa de inteligência artificial TAXMAN, para executar o raciocínio jurídico analítico a partir de uma exposição a casos de reorganização societária[1]. Apesar sua utilização limitada, esse programa abriu os horizontes para este tipo de ferramenta e, especialmente, nesta nova forma de pensar o direito.

 

Nesse contexto, o Brasil continua com um dos mais complexos sistemas tributários do mundo. Os motivos são diversos, quantidade de tributos, a pulverização da competência tributária e a profusão legislativa brasileira.

Consta no relatório Doing Business de 2020, do Banco Mundial, que são necessárias, em média, 1501 horas para as empresas, no país, calcularem e pagarem seus tributos.[2]

 

As empresas são submetidas a uma infinidade de obrigações acessórias que resultam em dados fiscais apresentados ao Estado para auxiliar na sua atividade fiscalizatória. Nesse contexto, a utilização de ferramentas tecnológicas que criem e analisem de forma automática esses dados é essencial para a redução de custos com burocracia tanto para o Fisco quanto para os contribuintes.

 

As ferramentas empregadas pelos contribuintes auxiliam das mais diversas formas, merecendo destaque: i) melhoria de processos: aumento de controles internos, rastreabilidade da informação e documentação; ii) aumento de eficiência: redução de erros com informações retiradas diretamente do sistema sem interferência humana; iii) redução de custos: número de horas/colaborador necessárias à operação é reduzida, habilitando os profissionais para realização de outras tarefas.[3]

 

Naturalmente, o fisco também se aproveita das mais variadas facilidades trazidas pela tecnologia para exercer sua atividade administrativa plenamente vinculada de cobrar tributos.

 

Desde a instituição do Sistema Público de Escrituração Fiscal (SPED)[4], a Receita Federal tem acesso à diversas informações dos contribuintes. São exemplos: envio de documentos, manutenção de registros, arrecadações, constituição de apurações, retenções e repasses a outras pessoas (físicas e jurídicas) que estiverem ligadas às operações de forma direta ou indiretamente. Quem visita o brasil e observa a dinâmica dos deveres instrumentais brasileiros fica impressionado com a quantidade de informações e com a assertividade do sistema. Considerações como esta levaram Rita de la Feria, professora da Universidade de Leeds, em entrevista ao JOTA [5], a mencionar que “Vocês têm uma administração tributária extremamente competente, um sistema de softwares extremamente bom”.

 

Na Procuradoria Geral da Fazenda (PGFN) não é diferente. Dentre as diversas ferramentas que tem à sua disposição, utiliza o Sistema PGFN Analytics[6], capaz de processar informações relevantes dos contribuintes para tomada de decisão quanto ao crédito inscrito em dívida ativa. A análise desse sistema permite, inclusive, a verificação de redução de atividade econômica, de dilapidação patrimonial, de saída fraudulenta do quadro societário, de fraude à execução e de sucessão empresarial.

 

São observações desta ordem que levam o Desembargador Federal Marcus Abraham a afirmar que “a inteligência artificial irá assumir um papel de destaque nas relações entre o Fisco e o Contribuinte.’[7] O magistrado diz que o desenvolvimento de um sistema informatizado ainda poderá ser útil na elaboração e interposição das ações de execução fiscal e, estando ligado aos Correios, Banco Central, Detran, Registro de Imóveis, Receita Federal e cadastro de créditos como o Serasa, irá permitir que sejam feitas medidas constritivas para a recuperação do crédito tributário.

 

A utilização de ferramentas como estas não é, portanto, novidade. Nesse panorama, vejamos um sistema tão assertivo quanto inédito, utilizado pela 12ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para auxiliar na satisfação do crédito tributário. Os resultados são alarmantes[8]:

 

“Com os bloqueios realizados, a Justiça conseguiu penhora integral em 1.512 processos e parcial em 1.157. O restante dos devedores não tinha dinheiro na conta, mas sofreu bloqueio de bens imóveis e de veículos automotores. Foram milhares de penhoras de imóveis e 2456 veículos tiveram sua circulação restringida pelo sistema do Renajud. Do total de devedores, 1.334 são pessoas jurídicas. No universo de quase 7 mil penhoras realizadas, foram verificadas apenas 3 inconsistências, automaticamente identificadas e corrigidas pelo próprio sistema, que possui sofisticadas ferramentas de proteção e controle.”

 

A eficiência, porém, vem acompanhada de algumas dúvidas: quando essas mesmas ferramentas apontarem o pagamento indevido (leia-se: não devido ou a maior) de tributos, qual deverá ser o posicionamento do fisco?

 

Estaremos diante de um herói, identificando tanto débitos quanto indébitos tributários e restituindo os pagadores em excesso, ou de um vilão, que enriquece os cofres públicos mesmo que de maneira contrária a diversos princípios constitucionais? Onde reside, nesse caso, a moral tributária do fisco e dos contribuintes?

 

Tal eficiência parece ser uma via de mão única. O reclamo constitucional pela eficiência (artigo 37, da Constituição Federal) é observado para arrecadar e fiscalizar. Não é assim, porém, no que toca a restituição de tributos, que já é dificultosa em razão dos diversos embaraços comumente criados pela Fazenda Pública.

 

Citando o autor cuja obra deu origem ao título do artigo:

 

Vige de um modo geral: Os agentes fiscais não têm – com quaisquer meios sempre – de arrecadar tanto mais tributos quanto possível… A maximização de melhores resultados fiscais não pode ser nem o estímulo nem a medida do rendimento do funcionário da Fazenda. A imagem retora é, antes de mais nada, a de um guardião do Direito Tributário.[9]

 

É preciso considerar obsoleto o entendimento de que o agir da Administração Pública submete somente a legalidade ao cumprimento de uma lei em sentido e forma, pois o próprio texto constitucional já emana comandos em busca do bem comum, alicerçado no art. 3º, IV da CRFB. Na prática, porém, o que vem acontecendo é diferente.

 

Veja-se, como exemplo, o Recurso Extraordinário nº 583.849, julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) com repercussão geral reconhecida, em que foi reconhecida a inconstitucionalidade de incidência do ICMS-ST sobre a diferença entre o valor efetivamente praticado e o constante da pauta fiscal. Considerando o rebuscado nível de cruzamento de dados realizados pelo fisco, esses valores poderiam ser facilmente identificados e devolvidos.

 

Não obstante o tema ser objeto da Súmula nº 431[10] do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os contribuintes ainda precisam realizar pedidos administrativos ou até mesmo ingressar com ações judiciais nas hipóteses de resistência administrativa do fisco.

 

O antagonismo ao entendimento de que o fisco deve valer-se das informações a que tem acesso em favor dos contribuintes é flagrante também no Judiciário. A 1ª Seção do STJ, ao julgar os Recursos Especiais número 1.365.095/SP e 1.715.256/SP, em sede de caráter repetitivo, decidiu que para uma empresa impetrar mandado de segurança e requerer de forma genérica o direito a uma compensação tributária, basta comprovar que é contribuinte e credora do tributo pago indevidamente, não sendo necessário juntar todos os comprovantes de pagamento. No momento da apuração do valor a ser compensado administrativamente pela Receita Federal, contudo, a empresa deverá apresentar todas as provas do recolhimento indevido.

 

Todavia, parece-nos que as interpretações e conotações dos termos jurídicos constantes tanto no Decreto n. 6.022/2007, que instituiu o SPED, como na Portaria RFB n. 1.384/2016, autorizam compreender que a tecnologia à disposição do Fisco permite apurar eventuais créditos a compensar, sendo desnecessário que o contribuinte sempre faça prova do recolhimento indevido,  podendo (e devendo) eventuais créditos serem reconhecidos até mesmo de ofício.[11]

 

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[1] PASSETI, Marcelo. Inteligência artificial aplicada ao direito tributário : um novo modelo na construção de uma justiça fiscal? / Marcelo Pasetti. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019, p 18.

[2] Paying Taxes 2020 report. Disponível em: https://www.doingbusiness.org/en/data/exploretopics/paying-taxes < Acesso em 02/03/2020>

[3] Automação e a Inteligência Artificial no Direito Tributário. Automation and artificial intelligence in tax practice.  Revista de Direito e as Novas Tecnologias | vol. 1/2018 | Out – Dez / 2018 p. 3

[4] Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br <Acesso em 02/03/2020>

[5] Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/imposto-sobre-transacao-financeira-e-destrutivo-a-economia-diz-especialista-10032020<acesso em 1203/2020>

 

[6] PGFN em números 2019. Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros-2014/pgfn_em_numeros_2019.pdf <Acesso em 02/03/2020>

[7] ABRAHAM, Marcus. Desafios da Inteligência Artificial nas Finanças Públicas. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/desafios-da-inteligencia-artificial-nas-financas-publicas-21032019<Acesso em 23/12/2019>

[8] TJRJ adota modelo inovador nas cobranças de tributos municipais. disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/5771753<acesso em 23/12/2019>

[9] TIPKE, Klaus. Moral tributária do estado e dos contribuintes; tradução Luiz Dória Furquim – Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2012 p 71.

[10] STJ, Súmula 431: “É pacífico nesta Corte o entendimento de que é inviável a cobrança do ICMS com base em pauta fiscal.”

 

Fonte: Blog do Jota.

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