Receita para capturar o Leão

por Editon Volpi

O ‘controle externo da Receita’ significaria, de fato, violar a autonomia do Fisco, subordinando-o aos interesses de máfias políticas articuladas a lideranças sindicais

Al Capone não caiu por ser um gângster, o maior de sua época, mas pelo crime banal de evasão tributária. Sem uniformes policiais, longe dos holofotes, auditores fiscais integram as equipes da Lava-Jato que desmontam as redes de corrupção erguidas na administração pública. A Receita Federal converteu-se em ameaça perene aos figurões bandidos da nossa pobre República. É por isso que, do ponto de vista deles, é vital enjaular o Leão, submetendo-o ao comando dos delinquentes de gravata. Os caçadores saíram a campo, armados com um pretexto fabricado no mundo sindical.

Nos idos de 2009, um certo Paulo Antenor, atual suplente do senador Magno Malta (PR-ES) e então presidente do Sindicato dos Analistas Tributários (Sindireceita), definiu uma fórmula de campanha sindical. Insurgindo-se contra a proposta de reservar o cargo de secretário da Receita a auditores fiscais, explicou que “há muita gente competente na área tributária que não está na Receita”, para concluir alertando sobre o risco de “tornar a sociedade refém de interesses de servidores”. Antenor, o anticorporativista de quermesse, traçava um rumo: de lá para cá, onde está o Sindireceita, aparece uma faixa com o bordão do “controle externo da Receita”.

Auditores fiscais são autoridades administrativas da Receita. Analistas tributários são técnicos auxiliares dos auditores fiscais. Sob a cobertura do bordão “anticorporativista” criado pelo esperto Antenor, o Sindireceita ofereceu um intercâmbio mutuamente vantajoso a políticos de diversos partidos. Basicamente, em troca da “valorização” dos analistas tributários, os parceiros políticos conseguiriam perfurar as regras de autonomia da Receita, nomeando aliados para os postos de chefia do órgão federal. Uma parte crucial desse programa condensa-se no Projeto de Lei 5.864, que será votado na Câmara nos próximos dias.

No começo, em 1985, eles eram “técnicos tributários”, servidores de nível médio. Logo, seguindo a onda geral de “valorização” de setores do funcionalismo com valiosas conexões políticas, os salários deles conheceram expressivos aumentos reais. Mas uma mudança de patamar ocorreu em dois saltos, entre 1999 e 2007, quando se tornaram “analistas tributários”, servidores de nível superior. O PL 5.864 completa o percurso, declarando-os autoridades administrativas, atribuindo-lhes funções privativas dos auditores fiscais e promovendo nova elevação salarial real. Será mais uma das “bondades” do Congresso, em benefício de uma casta de mais de sete mil funcionários públicos, na hora em que a maioria esmagadora dos trabalhadores enfrenta a retração salarial e o desemprego.

Comumente, “bondades” como essa são distribuídas por parlamentares em troca, apenas, do apoio eleitoral das corporações sindicais. Nesse caso, porém, há algo mais: a oportunidade de subjugar o Leão, colocando uma coleira no seu pescoço. O “controle externo da Receita” significaria, de fato, violar a autonomia do Fisco, subordinando-o aos interesses de máfias políticas articuladas a lideranças sindicais.

Uma certa Silvia Alencar, atual presidente do Sindireceita, tem muitos amigos, em diversos partidos. Três anos atrás, numa evidência de ecumenismo, sua vitoriosa candidatura sindical ganhou vídeos de apoios de congressistas do PT, PCdoB, PDT, PMDB, PSD e PP. Num desses acasos extraordinários, a relatoria do PL 5.864 ficou com o deputado Wellington Roberto (PR-PB), um dos mais notórios soldados da tropa de choque de Eduardo Cunha. Seu substitutivo, resultante da agregação de diversas emendas, determina o “compartilhamento da autoridade tributária” entre auditores fiscais e analistas tributários. É a realização do sonho do Sindireceita — e de tantos políticos atemorizados pelo avanço da Lava-Jato.

Nenhuma lei diz que o secretário da Receita Federal deve ser um auditor fiscal de carreira, mas a reserva do cargo às autoridades tributárias é parte da tradição e está prevista no regimento interno do órgão. Expandindo o conceito de autoridade tributária a mais de sete mil analistas, o PL 5.864 abre múltiplas rotas para a barganha política da nomeação do secretário — e, numa previsível reação em cadeia, para o preenchimento dos cargos regionais de chefia com funcionários “de confiança”. A Receita ficaria, então, sob o “controle externo” das máfias políticas — assim como, até outro dia, a Petrobras, a Eletrobras, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.

O estabelecimento de burocracias públicas profissionais, meritocráticas, é uma marca do Estado-Nação contemporâneo. No Brasil, a elite política conseguiu evitar a conclusão desse processo, apropriando-se da prerrogativa de indicar dezenas de milhares de funcionários em cargos de confiança. A operação parlamentar de captura da Receita evidencia que, em meio às turbulências geradas pela Lava-Jato, as máfias políticas encontram meios de reagir, protegendo seus interesses vitais. Afinal, eles conhecem, tanto quanto nós, o epílogo da saga de Al Capone.

A Receita permaneceu, até hoje, relativamente insulada dos balcões de negócios da baixa política. As leis de carreira concentraram a autoridade tributária numa seção singular de servidores concursados, que são os auditores fiscais. Uma série de controles institucionais reduzem as oportunidades de corrupção e a margem de manobras políticas no interior do Fisco. A finalidade do substitutivo de Wellington Roberto é explodir a concha que envolve o órgão, inchando-o subitamente pela adição de uma nova categoria de autoridades tributárias representada por um sindicato altamente politizado.

Os chefes das facções criminosas comandam suas organizações a partir dos presídios. O PL 5.864 deveria ser examinado à luz dessa experiência brasileira. Da sua cela, em Curitiba, Eduardo Cunha tem ao menos um motivo para sorrir, enquanto admira o nascer de um sol quadrado.

Escrito por:Demétrio Magnoli é sociólogo

Articulista do Jornal “O Globo”

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