In dubio pro contribuinte.

por Grupo Editores Blog.

 

Em período recente a tese do “in dubio pro contribuinte” teve seu debate recrudescido, especialmente em face das controvérsias girando em torno do voto de qualidade previsto no art. 54, do Anexo II do RICARF, assim como pela discussão acerca da manutenção das multas qualificadas em caso de divergência da turma, assunto especialmente delicado pelas considerações sobre o aspecto volitivo das ações do contribuinte.

 

A base para aplicação da tese em questão tem fundamento no art. 112 do CTN que assim dispõe:

 

Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I – à capitulação legal do fato;

II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

 

Pois bem. O interessante acórdão hoje em comento decidiu que “em caso de dúvida quanto às circunstâncias materiais do fato, o artigo 112 do Código Tributário Nacional prescreve que a interpretação da lei tributária deve ser dirigida a favor do contribuinte“, levando à dispensa da exigência fiscal imposta ao Contribuinte naqueles autos (Acórdão nº 303-32.457).

 

De início, destaca-se a peculiaridade do acórdão em referência no que tange ao tempo decorrido entre a sessão de julgamento e a formalização/publicação do acórdão. Com efeito, passaram-se quase doze anos entre esses dois marcos processuais, ou seja, embora o espaço dessa coluna se chame “Coluna CARF”, estamos diante de um acórdão do antigo Conselho de Contribuintes. Tal situação inusitada evidencia, por outro lado, que já há muito a aplicação do art. 112 do CTN trata-se de tema palpitante no âmbito do contencioso tributário e lança luzes importantes sobre aplicação da norma decorrente de tal dispositivo.

 

A aplicação do art. 112 do CTN no caso em comento deu-se em âmbito de auto de infração lavrado por divergências quanto à classificação fiscal de mercadoria. No caso específico, discutia-se a classificação fiscal de produto químico cujo correto enquadramento dependia da verificação do nível de “granulometria” de partículas.

 

De um lado, o contribuinte sustentou que o nível de granulometria aplicável à mercadoria era superior ou igual a 0,6 micrometros, enquanto o Fisco, arvorado em laudo solicitado pelo Agente responsável pela inspeção da mercadoria, sustentou que o nível de granulometria seria de 0,5 micrometros.

 

O acórdão da DRJ manteve a autuação, fundamentando o entendimento com base nas conclusões exaradas no laudo técnico apresentado pelo Fisco.

 

Em suas razões de recurso, reiterando aquelas já lançadas quando da impugnação, o Contribuinte buscou desqualificar o laudo em face das impropriedades verificadas durante a perícia que resultou no laudo utilizado pelo Fisco, tais como o fato de o perito não ter feito exame de granulometria, mas sim apenas o exame do tamanho da partícula; o equivocado uso do microscópio eletrônico; a ausência de validade científica da técnica empreendida, ante a impossibilidade de se realizar a contraprova (violação do devido processo legal); o decurso de mais de ano entre a data do desembaraço da mercadoria e o exame laboratorial levado a efeito, o que teria ocasionado a alteração das propriedades químicas da mercadoria em discussão, entre outros.

 

De igual maneira, o Contribuinte apresentou relatório técnico elaborado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas – IPT, assim como cartas de fabricantes dos equipamentos para medição de granulometria para sustentar as alegações de equívocos quantos aos métodos da perícia solicitada pelo Fisco, assim como as conclusões lá exaradas.

 

Neste ponto, merece destaque a defesa técnica do Contribuinte, pois não apenas combateu com fundamentos jurídicos as ilegalidades apontadas na condução da prova pericial no que tange aos atropelos ao devido processo legal, como também não se furtou de contestar fática e tecnicamente a própria prova técnica apresentada pelo Fisco, de modo a lançar dúvidas bastante razoáveis sobre uma prova que, em um primeiro momento, parecia definitiva.

 

A par das bens lançadas razões do recurso voluntário, o relator do voto condutor tratou de salientar os comentários de expert colhido a partir de diligência que destacou que diferenças na apuração de determinadas partículas dependem do método científico aplicável. Além do mais, o voto condutor destacou que o laudo juntado aos autos informava que o “diâmetro médio” da partícula relativa à mercadoria em discussão era de 0,5 micros, ou seja, não se tratava de uma medida certa, mas apenas uma média. Ainda, apontou que o laudo apresentado pelo Contribuinte com amostras das mercadorias importadas e realizado por via técnica diversa daquela utilizada no laudo que suportava o Fisco, resultava em conclusão de partículas superiores a 0,6 microns.

 

Assim, restou identificada divergência entre as provas técnicas apresentadas, ambas realizadas com base em procedimentos (métodos de aferição) usualmente aceitos para a medição determinante para classificação fiscal da mercadoria, restando clara a complexa atividade de enquadramento da mercadoria.

 

Com base em tal constatação, o relator do voto condutor chegou à conclusão que o critério técnico utilizado pelo laudo da Fiscalização era “no mínimo, questionável”, dando azo assim à aplicação do art. 112 do CTN, pois latente as dúvidas quanto à “natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza dos seus efeitos”, restando perfeitamente aplicável a tese do in dubio pro contribuinte.

 

O acórdão em comento e a tese encampada, por unanimidade, merece ser encarada como uma importante “herança” do Conselho de Contribuinte para o atual CARF, em especial em face do crescente número de acórdãos decididos por votos de qualidade, invariavelmente contrários aos contribuintes, inclusive em casos em que a divergência sobre a questão fática e o elemento volitivo do contribuinte são latentes, como usualmente ocorre em casos de lançamentos com multas agravadas.

 

Ora, se o Judiciário já tem dado reiteradas demonstrações cancelando, com base no art. 112 do CTN, decisões contrárias aos contribuintes tomadas com base no voto de qualidade, por que não esperar que o próprio CARF, como o Conselho de Contribuintes já o fez em passado nem tão recente conforme visto, passe a adotar sem medo a tese do in dubio pro contribuinte?

 

O art. 112 do CTN pela sua relevância como instrumento para defesa dos contribuintes, em especial contra autos de infração controversos como no exemplo aqui tratado, merece a devida valorização pela comunidade jurídico-tributária e nada melhor do que essa valorização comece justamente pelo CARF. Ou seja, em caso de empate, o resultado deve ser em favor do contribuinte, conforme autorizado pelo art. 112 do CTN, e não invariavelmente contrário, conforme se verifica na grande maioria das vezes em que a técnica do voto de qualidade é utilizado para decidir o litígio.

 

Autor:

Thales Stucky – Sócio da prática tributária do Trench, Rossi e Watanabe Advogados, LL.M. em Tributação Internacional pela New York University

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