A inconstitucionalidade da exigência de ISS sobre royalties pagos pelo uso de marca

por Grupo Editores Blog.

 

O fato gerador do Imposto Sobre Serviços (ISS), nos termos do artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, é prestar serviços, uma obrigação de fazer que não se confunde com direitos de ativos intangíveis.

 

Não obstante, a Lei Complementar nº 116, em seu item 3.02, permite a incidência de ISS sobre “a cessão de direito de uso de marcas e de sinais de propaganda”.

 

A cessão de direito de uso de marca é obrigação de dar, que não envolve o exercício de uma atividade, trabalho ou esforço humano. Não é obrigação de fazer. Assemelha-se à situação fática da locação de bens móveis (que também não envolvia uma obrigação de fazer) e cuja inconstitucionalidade foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante 31.

 

A referida Súmula foi reafirmada pelo Plenário em 2010, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 626.706, que em sede de repercussão geral decidiu pela não incidência de ISS sobre locação de filmes cinematográficos, videoteipes, cartuchos para videogames e assemelhados (STF, RE 626.706, rel. Gilmar Mendes, j. 8/9/2010 e DJ 24/9/2010).

 

Em que pese a clara inconstitucionalidade da exigência de ISS sobre fatos que não são “prestação de serviços”, há precedentes do Supremo Tribunal Federal que admitem a incidência de ISS sobre cessão de direito de uso de marca [1], mas nenhum se encontra em sede de repercussão geral.

 

Por força do artigo 110 do Código Tributário Nacional (CTN) “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.  A prestação de serviços é conceito de Direito privado e foi utilizado expressamente para delimitar a competência tributária dos municípios no artigo 156, inciso III, da CF. Assim sendo, não pode ser alterado pelas leis tributárias nacionais ou municipais.

 

O Código Civil, em seu artigo 594, estabelece que toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição. Serviço é um ato, um trabalho, um fazer, que resulta uma prestação material ou imaterial. Como regra geral, o objeto do contrato é o ato e não o resultado. A exceção é a contratação por obra determinada do artigo 602 do Código Civil.

 

Nesse contexto, a jurisprudência pacífica do STF adota a materialidade da incidência tributária como critério adequado para resolver conflitos de competência, como exemplifica trecho da ementa abaixo:

 

“A terminologia constitucional do ISS revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável — art. 110 do CTN.” (STF, RE 116.121, rel. min. Octavio Galotti, j. 11/11/2000, DJ 25/5/2001) [2]

 

Com o aumento de complexidade decorrente das novas relações econômicas, proliferaram-se os contratos híbridos e atípicos, nos quais os ativos intangíveis têm mais relevância e mais valor.

 

O STF passou, então, a admitir a incidência do ISS sobre contratos mistos, que envolvem a prestação de serviços cumulada com outras obrigações. Exemplo disso são as decisões sobre o contrato de franquia (o caso concreto era de contrato de franquia empresarial com conhecida rede da fast food, que inclui cessão de uso de marca, treinamento de funcionários, aquisição de matéria-prima etc.) e sobre planos de saúde (atividades realizadas pelas operadoras de planos de saúde, que não se confundem com o seguro-saúde), a saber:

 

“Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Incidência sobre contrato de franquia. Possibilidade. Natureza híbrida do contrato de franquia.” (STF, RE 603.136, rel. min. Gilmar Mendes, j. 29/5/2020, DJE 16/6/2020, Tema 300).

 

“As operadoras de planos de saúde realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza — ISSQN, previsto no art. 156, III, da CRFB/1988.” (STF, RE 651.703-ED – segundos, rel. min. Luiz Fux, j. 28/2/2019, DJ 7/5/2019, Tema 581)

 

Ambos os precedentes envolveram contratos nos quais as obrigações de fazer e de dar são inseparáveis, como explica o precedente abaixo:

 

“A Súmula Vinculante 31, que assenta a inconstitucionalidade da incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) nas operações de locação de bens móveis, somente pode ser aplicada em relações contratuais complexas se a locação de bens móveis estiver claramente segmentada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira. Hipótese em que contratada a locação de maquinário e equipamentos conjuntamente com a disponibilização de mão de obra especializada para operá-los, sem haver, contudo, previsão de remuneração específica da mão de obra disponibilizada à contratante. Baralhadas as atividades de locação de bens e de prestação de serviços, não há como acolher a presente reclamação constitucional” (STF, Rcl 14290 AgR, rel. min. Rosa Weber, j. 22/5/2014, DJe 20/6/2019).

 

Esse é o limite para flexibilização da Súmula Vinculante 31, que não é aplicável aos contratos complexos, os quais combinam as obrigações de fazer e de dar, de modo inseparável. Para contratos que envolvem apenas uma obrigação de dar — como é a cessão de ativos intangíveis — deve prevalecer a orientação sumulada pela corte.

 

A cessão de uso de marcas é obrigação de dar que, quando individualizada no contrato, não deve se sujeitar à incidência do ISS.

 

Ainda que o número de precedentes do STF contrários aos contribuintes impressione à primeira vista, todos baseiam-se na Reclamação (Rcl) nº 8623 (AgR, rel. min. Gilmar Mendes) acima e referem-se uns aos outros. Vejamos:

 

— ARE 1.048.290-AgR, rel. min. Edson Fachin, j. 5/12/2017, DJ 14/12/2017 — decisão monocrática que se fundamenta na Rcl nº 8.623, rel. min Gilmar Mendes;

 

— ARE 1.153.708-AgR, rel. min. Carmen Lucia, j. 1/3/2019, DJ 29/3/2019 — refere-se ao ARE 1.048.290-AgR, rel. min. Edson Fachin e à Rcl nº 8.623, rel. min Gilmar Mendes;

 

— ARE 1.166.624 — AgR, rel. min. Edison Fachin, j. 13/12/2019, DJ 19/2/2020 — refere-se ao ARE 1.153.708-AgR, rel. min. Carmen Lucia e à Rcl nº 8.623, rel. min Gilmar Mendes; e,

 

— ARE 1.224.310 — AgR, rel. min. Carmen Lucia, j. 21/2/2020, DJ 4/3/2020 refere-se ao ARE 1.048.290-AgR, rel. min. Edson Fachin; Rcl nº 8.623, rel. min Gilmar Mendes e ao ARE nº 1.153.708-AgR da própria ministra Carmen Lucia.

 

Em resumo e com a devida vênia, as decisões refletem a posição de três ministros que seguem um precedente de dois parágrafos sem uma análise mais profunda do tema. E o argumento suscitado pelo ministro Gilmar Mendes na Rcl 8623 AgR/RJ, e inadvertidamente repetido em outras decisões, limita-se aos dois parágrafos abaixo transcritos:

 

“Por fim, ressalte-se que há alterações significativas no contexto legal e prático acerca da exigência do ISS, sobretudo após a edição da Lei Complementar 116/2003, que adota nova disciplina sobre o mencionado tributo, prevendo a cessão de direito de marcas e sinais na lista de serviços tributados, no item 3.02 Anexo.


Essas circunstâncias afastam a incidência da Sumula 31 sobre o caso, uma vez que a cessão do direito de uso de marca não pode ser considerada locação de bem móvel, mas serviço autônomo especificamente previsto na Lei Complementar 116/2003 (Rcl 8623 — AgR, rel. min. Gilmar Mendes, j. 22/2/2011 e DJ 10/3/2011).

 

Cessão de uso de marcas é uma simples obrigação de dar que não se subsome ao fato imponível do ISS. Admitir-se que uma lei complementar poderia ter eficácia para alterar o conceito de Direito privado de prestação de serviços, incluindo uma cessão de direitos sem qualquer obrigação de fazer, resultaria em desrespeito ao artigo 110 do CTN e ao artigo 156, inciso III, da CF.

 

Não obstante os precedentes acima, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é unânime ao afastar o ISS em contratos de cessão de direitos [3], afirmando que “a flexibilização do conceito de serviço pelo STF nos casos de planos de saúde e franquias que não implica a total irrelevância dessa classificação”. Confira-se abaixo ementa da arguição de inconstitucionalidade abaixo:

 

“Arguição de inconstitucionalidade  Definição de serviço constante de listas anexas às L. C. ns. 116/03 e 13.701/03 que preveem incidência de ISS na cessão do direito de uso de marcas  Fato que não configura prestação de serviço  Ofensa aos artigos 154,1, e 156, II, CF  Incidente julgado procedente” (TJ-SP, Arguição de Inconstitucionalidade 0015571-31.2011.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Corrêa Vianna, j. 04/05/2011, V.U.).

 

Louvável a decisão. A própria jurisprudência do STF é firme ao afastar a incidência do ISS sobre fatos que não correspondem a uma prestação de serviços. Os precedentes que tratam de franquia e planos de saúde foram envolvem obrigações de dar e de fazer combinadas, logo, não servem para justificar a tributação de cessão de direitos intangíveis.

 

Por fim, lembramos que há soluções de consulta da Receita Federal do Brasil (COSIT nº 146/2019, 74/2019, 480/2017), que afastam a incidência de PIS e Cofins no pagamento de royalties pelo uso de marca justamente porque não há prestação de serviços.

 

Como se vê, aqueles precedentes do STF admitem a incidência de ISS na cessão de uso de marcas merecem melhor reflexão. Devem ser revisitados para que seja mantida a coerência do sistema jurídico brasileiro e em respeito à jurisprudência histórica da Suprema Corte Federal.

 

[1] ARE 1224310 — AgR, rel. min. Carmen Lucia, j. 21/2/2020, DJ 04/3/2020; ARE 1153708-AgR, rel. min. Carmen Lucia, j. 1/3/2019, DJ 29/3/2019; ARE 1166624 – AgR, rel. min. Edison Fachin, j. 13/12/2019, DJ 19/2/2020, todos baseados na Rcl 8623 – AgR, rel. min. Gilmar Mendes, j. 22/2/2011 e DJ 10/3/2011.

 

[2] No mesmo sentido é o AI 721.711 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 10/3/2009, 2ª T, DJE de 3/4/2009.

 

[3] TJ/SP: AC 1061951-52.2019.8.26.0053, rel. desembargadora Beatriz Braga, j. 28/10/2020; AC 1012374-71.2020.8.26.0053, rel. desembargador Roberto Martins de Souza, j. 17/11/2020; AC 1000725-37.2020.8.26.0562, rel. desembargador Eurípedes Faim, j. 26/11/2020; AC 1018672-18.2019.8.26.0602, rel. desembargador Eurípedes Faim, j. 28/8/2020; AC 1010075-58.2019.8.26.0053, rel. desembargador Fortes Muniz, 20/8/2020; AC 1032050-10.2017.8.26.0053, rel. desembargador Henri Harris Junior, j. 27/9/2020.

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-dez-08/okuma-exigencia-iss-royalties-uso-marca

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