O Direito esbarra nos desafios regulatórios da economia digital- suas estruturas foram concebidas para regular condutas em mundo tangível.
Por exemplo, há pouco tempo atrás não se sabia o que eram as criptomoedas, que hoje ocupam diariamente as páginas dos noticiários. Desde 2008, quando foi criada a bitcoin de Satoshi Nakamoto, existem mais de 1000 criptomoedas espalhadas pelo mundo.
O Banco Central do Brasil já emitiu comunicados sobre os riscos e sobre as operações com criptomoedas, e a Comissão de Valores Mobiliários emitiu recentemente instrução normativa para disciplinar os crowdfundings. Há ainda projeto de lei, o PL 2303/2015, na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre “arranjos de pagamentos”.
Há movimentação semelhante no direito tributário. Verifica-se que têm sido frequentes as edições de diplomas normativos e soluções de consulta que tratam da tributação de serviços intangíveis.
Contudo, esse movimento é desordenado, em prejuízo dos contribuintes, que assistem desorientados aos entes federativos disputando a tributação desses novos fatos geradores.
Enquanto os contribuintes ainda estavam alvoroçados com notícias sobre a tributação dossoftwares transacionados por download ou streaming, com a edição do Convênio ICMS 106 diversos Municípios, como São Paulo e Rio de Janeiro, anunciaram a tributação desses mesmos fatos geradores.
Paralelamente a União ataca pelos flancos. Quase que suavemente, significativas modificações estão se estabelecendo na tributação de serviços e intangíveis, aumentando a carga tributária e obrigações acessórias do setor pela edição de uma série soluções de consulta da Coordenação-Geral de Tributação- Cosit.
Interessante notar que desde 2013 as soluções de consulta da Cosit, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da Receita Federal, ou seja, quaisquer contribuintes que se subsumam aos seus termos sujeitam-se aos seus efeitos, ainda que não sejam o próprio consulente, com a mesma eficácia que qualquer norma administrativa.
Destaque-se a Solução de Consulta nº 431, de 20 de outubro. Essa solução define que há a incidência de PIS/Pasep e Cofins sobre o recebimento de royalties do exterior em pagamento de licenciamento de tecnologias. O fundamento para a decisão é que os royalties recebidos em pagamento, por não configurarem receita de venda de mercadorias ou de prestação de serviços, não estariam acobertados “nas hipóteses de não incidência da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins previstas, respectivamente, no art. 5º da Lei nº 10.637, de 2002, e no art. 6º da Lei nº 10.833, de 2003”.
O caso concreto submetido à apreciação é de uma empresa de biotecnologia dedicada à pesquisa e ao desenvolvimento de novos fármacos a serem utilizados no tratamento do câncer, que desenvolveu tecnologia objeto de contrato de licenciamento firmado com a empresa no exterior, de patentes e know-how. Não obstante, a regra que se estabelece a partir da solução de consulta n. 431 estende-se à hipótese de quaisquer recebimentos de pagamentos de royalties, inclusive no pagamento de licenças relativas aos softwares.
A leitura do texto da consulta dá a impressão de que perdemos alguma coisa. De fato, na construção do silogismo subjacente à consulta, em síntese, afirma-se que os pagamentos deroyalties não se configuram como pagamentos de receitas de serviços ou mercadorias, então a isenção de PIS e Cofins prevista para a exportação de mercadorias e serviços não se aplicaria.
Mas a isenção na exportação mencionada nos art. 5º da Lei nº 10.637, de 2002, e no art. 6º da Lei nº 10.833, de 2003, referem-se ao PIS e à Cofins incidentes sobre a importação (e exportação), nos termos das modificações estabelecidas pela Lei n. 10.865/2004. Embora detenham a denominação “PIS e Cofins”, a rigor, tratam-se de tributos cujo fato gerador e base de cálculo não se confundem com o “PIS e a Cofins” incidentes internamente. Trata-se de hipótese de não-incidência das contribuições no comércio exterior.
A própria Receita Federal, em diversas soluções de consulta, como na recente 381/2017, firmou o entendimento de que não incide PIS e Cofins -importação no pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa para o exterior referente a licenças de comercialização ou distribuição desoftware, por terem natureza de royalties.
Já a solução de consulta 499, vinculada à solução de consulta 449, determinou a obrigação de registro no Siscoserv de operações que envolvem a remessa para pagamento do direito de distribuir ou comercializar softwares ou aplicativos disponibilizados na nuvem (cloud computing), também conhecidos como Software as a Service (SaaS).
O registro no Siscoserv implica em controles de transações com serviços e intangíveis, e seu descumprimento pode deflagrar aplicação de penalidades aos contribuintes, por não cumprimento de obrigações acessórias. E por certo, poderá instrumentalizar a obrigação tributária.
A solução de consulta digna de atenção é a 446/2017, que determinou que o valor aduaneiro dos jogos de videogames importados em um suporte físico compreende o custo ou valor total da transação, incluídos o valor do software e do suporte físico.
Ora, a regra inscrita no art.81 do Regulamento Aduaneiro, fundada na Decisão 4.1 do Comitê de Valoração Aduaneira da OMC, estabelece que a tributação aduaneira apenas incidirá sobre o suporte físico, excluído o conteúdo incorpóreo.
A gênese de muitos desses problemas está na divisão de competências para os tributos sobre o consumo. No Brasil, optou-se, nas origens, por instituir um imposto geral sobre as vendas de mercadorias (IVC) e um imposto geral sobre os serviços (imposto de indústrias e profissões) de forma apartada e com a competência tributária dividida entre dois entes federativos. Esse é um tremendo óbice para adotar um conceito de mercadorias e serviços como o europeu ou o preconizado pela OCDE, em que os bens se dividem em corpóreos e incorpóreos, simplesmente.
Discussões que visem traçar um limite entre serviços, mercadorias e outros intangíveis paulatinamente perdem o seu sentido, pois a economia digital passa a ser a própria economia. O entendimento jurisprudencial e doutrinário prevalecente, de serviço como “obrigação de fazer” tem suas raízes estão no direito romano, quando sequer existia a possibilidade de prestação de serviços não-presenciais.
Em síntese, a sistematização da tributação desses novos fatos que surgem com a economia digital passa necessariamente pela reestruturação da divisão de competências tributárias.