A Sociedade Simples
Segundo o art. 981 do Código Civil, quando duas ou mais pessoas se obrigam reciprocamente a contribuir com bens e serviços para o exercício de atividade econômica e partilhar de suas rendas, essas pessoas celebram o chamado contrato de sociedade.
Esse contrato de sociedade é disciplinado por normas específicas de acordo com as peculiaridades desse tipo de contrato. Em termos globais, temos duas categorias de contratos de sociedade, ou, também denominados, de contrato social: as sociedades simples e as sociedades empresárias.
Para que não haja qualquer confusão, apesar do óbvio: Sociedade Simples nada tem a ver com o Programa Tributário do Simples Nacional, aquela a tratar de um dos tipos societários do Direito Civil; este a tratar de um programa diferenciado a favor das micro e pequenas empresas. De qualquer modo, o art. 3º da Lei Complementar n. 123/2006 esclarece que podem ser consideradas microempresas ou empresas de pequeno porte, para enquadramento no Simples Nacional, as sociedades simples (de forma geral), a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) e o empresário registrado como tal no Registro Público de Empresas Mercantis, desde que atendam determinados requisitos. Deste modo, o Simples Nacional acolhe também as sociedades simples, mesmo aquelas não caracterizadas como empresas.
As sociedades empresárias são aquelas que exercem suas atividades por meio de uma organização operacional com estrutura fundada em pessoas e em meios materiais que se sobrelevam à atividade pessoal dos sócios. Mesmo na hipótese comum de serem os sócios os dirigentes da empresa, distingue-se na sociedade empresária o caráter de dependência aos instrumentos organizacionais disponíveis. Sem a atuação conjunta deste complexo de bens e pessoas, a sociedade empresária não dispõe de funcionalidade e não consegue alcançar suas finalidades.
Por seu turno, a definição de sociedade simples como categoria é feita inicialmente por exclusão à sociedade empresária. Ou seja, em princípio, a sociedade simples não seria explorada de forma empresarial. Leia-se o art. 982 do Código Civil: “Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967), e, simples, as demais”.
Ao propósito deste artigo, vamos nos ater às chamadas sociedades simples. Mas, o que viria a ser ‘atividade própria de empresário’? O art. 966 do Código Civil responde com uma afirmação: “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. E o seu parágrafo único estabelece uma negação: “não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.
São, portanto, sociedades simples aquelas que não exploram sua atividade econômica de forma empresarial. São elementos de empresa: investimento significativo de capital ou de terceiros, estabelecimento de tamanho e porte razoável, investimentos em ativo fixo, presença de equipamentos e de empregados, uso de tecnologias especiais e aparelhos sofisticados etc. O Professor Fábio Ulhoa Coelho dá um exemplo significativo: “A sociedade de dois pediatras que dividem as despesas do consultório é da categoria simples. Está alcançada pela negação do conceito de empresário constante da primeira parte do parágrafo único do art. 966 do Código Civil. Já a de dois outros médicos dessa mesma especialidade que organizam um hospital infantil, não pode ser classificada como simples, porque a atividade intelectual dos sócios, nesse caso, tem a qualidade de elemento de empresa. A sociedade deles escapa da negação do conceito de empresário pela exceção da parte final do mesmo dispositivo” (“Curso de Direito Civil – Livro: Contratos”).
Ocorre, porém, que as sociedades simples podem assumir tipos societários diversos. Podem ser efetivamente simples (com registro em cartório), mas também cooperativa, por quota limitada, em nome coletivo ou em comandita simples (estas com registro na Junta Comercial). As mais comuns são as chamadas “Simples Pura”, com registro em Cartório, mas muitas sociedades simples se registram nas Juntas Comerciais com o tipo de “Por cotas de responsabilidade limitada”.
O Profissional Autônomo
Sabe-se que a regra geral da base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Não é o valor econômico e nem o valor financeiro; é o preço do serviço, como medida do valor monetário, isto é, a soma de dinheiro cobrada pela prestação do serviço acordada entre as partes.
Contudo, há uma exceção (entre outras): quando o serviço for prestado sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte. Essa exceção consta do § 1º do art. 9º do Decreto-lei n. 406/68, que se manteve em vigor, apesar da vigência da Lei Complementar n. 116/03, por decisão da Justiça Superior. Sua redação é a seguinte:
“§ 1º – Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho”.
Verifica-se, portanto, que a regra do preço do serviço foi excluída nos casos de trabalhos pessoais do próprio contribuinte, devendo a lei municipal estabelecer outros critérios para determinação da base de cálculo, desde que não seja o preço da remuneração.
Por comodismo e facilidade, a grande maioria dos Municípios ‘esqueceu’ as alíquotas e fixou um valor a ser pago por esses contribuintes, independentemente da natureza do serviço. Foi, assim, instituído o chamado “ISS Fixo”. Deste modo, tanto faz ser um serviço de médico, engenheiro, advogado etc., o valor do imposto passou a ser igual para todos os profissionais. Alguns Municípios instituíram apenas uma diferença de valor entre profissionais de nível de ensino superior e daqueles de nível médio. Outras leis municipais também decidiram aplicar um redutor quando o profissional estiver em início de carreira.
São fortes as restrições ao valor fixo do imposto, a violar os princípios da capacidade contributiva e da isonomia, inscritos no § 1º do art. 145 e no inciso II do art. 150, respectivamente, da Constituição Federal. De fato, o ISS fixo não tem base de cálculo e nem alíquota, a ser determinado sem qualquer critério, jurídico ou econômico, em relação ao contribuinte.
Outro fato, no mínimo curioso, é o referido § 1º ter estabelecido como ‘base de cálculo’ a inexistência de ‘base de cálculo’. Expliquemos: a base de cálculo de um tributo é norteada pela objetividade, quantificação e comparação. A objetividade tem por alvo o montante da dívida que, conforme o percentual da alíquota, vai indicar o valor em dinheiro. A quantificação tem por alvo aferir a dimensão do fato jurídico tributário exercido pelo contribuinte, tais como, preço do serviço (ISS), valor da operação (ICMS), valor venal (IPTU) etc. E, por fim, a comparação, que tem por alvo confirmar a dimensão do fato previsto como fato gerador do tributo, ou, em outras palavras, constatar a materialidade do fato.
Ora, a partir da regra ditada no texto mencionado, a dizer claramente que a importância paga a título de remuneração não pode ser considerada como base de cálculo, fica excluída aquela que seria a verdadeira e única base de cálculo do imposto, impedindo a sua objetividade, a sua quantificação e a possibilidade de comparação, pois se nada mais existe como parâmetro comparativo. E sem base de cálculo, impossível estabelecer alíquota. Ou seja, o ISS fixo é um critério estranho e desalinhado do sistema jurídico desse imposto.
Por esse motivo, problemas insanáveis acontecem nas relações fisco municipal x profissionais autônomos. Por exemplo, quando o profissional paralisa suas atividades por um período (por motivo de viagem, férias, doença etc.). Se serviços não foram prestados em tal período, como justificar a cobrança do ISS? Já houve casos ‘surrealistas’ de autônomo falecido e a Prefeitura a lançar o imposto, mesmo depois de morto o contribuinte.
Ocorre, porém, que os contribuintes não contestam o ISS fixo por suas anormalidades, porque, na verdade, o imposto assim calculado passou a ser visto como um benefício fiscal, pois o valor fixado pelos Municípios está muito aquém do real preço do serviço. O ISS fixo anual oscila de R$ 200,00 a R$ 700,00, a depender da lei local, para profissionais de nível superior. Pois bem, se considerarmos a alíquota mínima de 2% e o valor máximo de R$ 700,00, a receita anual tributável do contribuinte seria de R$ 35.000,00, ou seja, uma média mensal de R$ 2.916,66 de ganho para médicos, advogados, engenheiros, dentistas etc. Eis aí um benefício fiscal que não ingressa no campo da renúncia, isenção e remissão parciais.
Ao mencionar “trabalho pessoal do próprio contribuinte”, deve-se levar em conta o fornecimento de trabalho diretamente prestado pelo sujeito passivo. Não seria o serviço prestado por um assalariado do contribuinte, pois ‘empregado’, ou assalariado, não pode ser ‘contribuinte’ do ISS, quando estiver atuando em relação de emprego. Assim reza o inciso II do art. 2º da Lei Complementar nº 116/03.
Nada impede, porém, que o profissional contribuinte do ISS tenha o auxilio de um empregado para prestar o serviço, mas sem retirar do profissional a sua responsabilidade pessoal.
A Sociedade Profissional
O Decreto-lei n. 406/68, com as alterações promovidas pelo Decreto-lei n. 834/69, prescreve:
§ 3º do art. 9º: “Quando os serviços a que se referem os itens 1, 2, 3, 5, 6, 11, 12 e 17 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1º, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviço em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável”.
Os itens da lista de serviço já não importam, em vista de suas mudanças, sendo hoje aplicada a lista da Lei Complementar n. 116/03. Atualmente, seriam sociedades das seguintes profissões:
– Médicos de qualquer especialidade (subitens 4.01, 4.11, 4.13 e 4.15);
– Psicólogos (subitem 4.16);
– Enfermeiros (subitem 4.06);
– Fonoaudiólogos (subitem 4.08);
– Protéticos (subitem 4.14);
– Dentistas (subitem 4.12);
– Médicos Veterinários (subitem 5.01);
– Contabilistas, inclusive Auditores Contábeis (subitens 17.19 e 17.16);
– Advogados (subitem 17.14);
– Engenheiros de qualquer especialidade e Arquitetos (subitem 7.01);
– Economista (subitem 17.20).
Nada impede que a lei municipal amplie o quadro de profissões, a incluir, por exemplo, fisioterapeutas, jornalistas, assistentes sociais, nutricionistas e outras. Em certo sentido, até seria mais razoável em função do princípio da isonomia.
Observa-se, então, que os profissionais autônomos reunidos em sociedade, com o objetivo de exercer suas profissões idênticas, sob o manto de uma pessoa jurídica, continuariam a ter o mesmo privilégio fiscal que gozavam como pessoa física.
Desde que, porém, que essa pessoa jurídica não venha a exercer atividades empresariais. Em outras palavras, obriga-se a ser uma Sociedade Simples, conforme explicitada no Direito Civil. Ao caso, tanto faz o número de sócios, dois, dez, vinte, desde que todos estejam credenciados pelo órgão da categoria profissional e, efetivamente, venham a exercer sua atividade em nome da sociedade.
Dito isso, a primeira condição a ser considerada para definir uma ‘Sociedade de Profissionais’, para efeito de enquadramento no ISS, é a sociedade ser classificada como Simples, não importa o tipo societário assumido. Em seguida, o seu pequeno porte, em termos de tamanho do estabelecimento e do capital, pois incabível uma Sociedade efetivamente Simples ser dedicada a negócios de vulto ou complexos. A terceira condição decorre do fato de que a origem da receita ser fruto do trabalho direto de seus sócios, pois estes atuam diretamente na prestação dos serviços e não somente como administradores da sociedade.
Na verdade, o fato de a Sociedade Simples assumir o tipo de sociedade por cotas limitada não tem o condão de excluí-la do grupo de sociedades profissionais, nos termos do § 3º do art. 9º do Decreto-lei n. 406/1968. O aspecto essencial a ser observado é a prestação direta de serviços pelos sócios, e que tal prestação venha a representar, de fato, a receita bruta auferida pela sociedade.
Foi nestes termos que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu:
Superior Tribunal de Justiça:
1. A orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial.
2. “A forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que os profissionais […] exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”. (AgRg no AREsp 519.194/AM, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, DJe 13/08/2015.)
3. No caso dos autos, não obstante a agravante ser uma sociedade limitada, o Tribunal de origem assentou que se ela dedica, precipuamente, à exploração do ofício intelectual de seus sócios, de forma pessoal, sem caráter empresarial, razão pela qual é cabível o benefício da tributação por alíquota fixa do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).
Agravo regimental provido.
AgRg no AREsp 792878 / SP – Rel. Min. Humberto Martins – DJ 14/12/2015
Vale transcrever parte do voto do Ministro Relator:
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator): Prospera a pretensão recursal de reforma da decisão prolatada. Consoante fixado no decisum ora agravado, a orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial. Com efeito, a jurisprudência desta Corte chegou a afirmar que o benefício não se estende à sociedade limitada porque, nessa espécie societária, a responsabilidade do sócio é limitada ao capital social. Todavia, o entendimento foi reformulado no recente julgamento do Recurso Especial n. 1.512.652/RS, Rel. Min. Napoleão Maia, que tratou da aplicação da alíquota fixa do ISS à sociedade simples, que estava sendo enquadrada como empresária pelo mero fato de existir a responsabilização limitada dos sócios conforme sua cota social.
Na oportunidade ressaltou-se que “o requisito da organização dos fatores de produção é essencial para a configuração da sociedade empresária e não o mero fato de existir a repartição de responsabilidade interna concernente ao capital social”; isto é, “a forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que as profissionais odontólogas exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”.
Por evidência, se vinte médicos resolvem instituir uma sociedade, cotizando um capital que possibilite adquirir ou alugar um imóvel com vinte consultórios, nos quais atuarão os médicos associados, o capital da sociedade terá um vulto mais representativo do que uma sociedade constituída de dois sócios. Mas, tal fato isolado não pode significar que a sociedade tenha elementos de empresa. Necessário seria observar a mais: a) o número de empregados; b) o investimento em equipamentos; c) a efetiva atuação dos sócios, não como administradores, mas, sim, como prestadores diretos dos serviços.
Deste modo, Sociedades Profissionais são sociedades simples de trabalho profissional, sem cunho empresarial, de caráter especialíssimo, que se organizam e adquirem personalidade jurídica, cujos serviços são prestados diretamente por seus sócios, nada impedindo que contrate terceiros para determinadas atribuições auxiliares.
E sendo assim, o ISS fixo será calculado em função do número de sócios, a lembrar de que assalariados não sofrem incidência do imposto. Temos, também, os chamados ‘parceiros’ atuantes na prestação dos serviços. Esses parceiros não são empregados e nem sócios, mas exercem atividades na sociedade como contratados. Em geral, assinam Recibo de Profissional Autônomo – RPA -, pela remuneração auferida e paga pela sociedade.
Entende-se que o mais correto seria a inscrição desses ‘parceiros’ como profissionais autônomos, a recolher, portanto, o seu próprio imposto como pessoa física. Acrescentar o seu nome no somatório da sociedade profissional que contratou os seus serviços, aparenta uma bitributação.
São poucos os Municípios que investigam a fundo as chamadas sociedades profissionais e, por isso, quase não surge o problema dos ‘parceiros’ contratados. O correto, porém, seria a sociedade profissional exigir do ‘parceiro’ a prova de sua inscrição como autônomo no Município onde estiver estabelecido, ou, na falta de estabelecimento, no local do seu domicílio. Tal providência evitaria maiores problemas no futuro.
Roberto Adolfo Tauil
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