Metas e bônus para fiscais são bons incentivos?

por Grupo Editores Blog.

No fim de 2016, o presidente Michel Temer editou a Medida Provisória nº 765, tratando de diversos aspectos envolvendo as carreiras de servidores públicos federais. A MP, publicada no dia 29 de dezembro, trouxe novidade, no mínimo inquietante, ao criar o “Programa de Produtividade da Receita Federal do Brasil e o Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira” tendo por objetivo “incrementar a produtividade nas áreas de atuação dos ocupantes dos cargos de Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil e de Analista Tributário da Receita Federal do Brasil.”

À primeira vista, poderia se considerar tratar-se de medida positiva, pois a MP estaria instituindo critérios de gestão e governança para os auditores da Receita, semelhante ao que as empresas privadas fazem com seus funcionários, estabelecendo metas a serem cumpridas e resultados a serem obtidos. Entretanto, um exame um pouco mais detido faz com que se perceba que incentivos perversos foram criados, e que provavelmente trarão consequências graves ao processo administrativo federal.

Da mesma forma que uma empresa privada busca maximizar os seus lucros, a Fazenda Pública busca maximizar suas receitas, oriundas da arrecadação tributária. Sendo assim, as metas de produtividade não teriam como objetivo principal a fiscalização em si inerente ao Estado, mas sim autuações fiscais contra os contribuintes, visando constituir créditos tributários em favor da União.

Os incentivos criados pela MP poderão levar à sistematização de autuações com base em valores abusivos. Tal conclusão se dá a partir da simples leitura dos dispositivos da MP, que dispõem como base de cálculo dos bônus a “arrecadação de multas tributárias e aduaneiras” e os “recursos advindos da alienação de bens apreendidos” (artigo 5º, parágrafo 4º, incisos I e II da MP).

Portanto, um infeliz paralelo se faz com uma das causas apontadas como responsáveis pela crise dos sub-primes norte-americana, ocorrida no ano de 2008 e o fenômeno do “risco moral”, extensamente estudado pela Análise Econômica do Direito. O risco moral acontece quando incentivos jurídicos levam ao reiterado mau comportamento dos agentes e, no caso da crise americana, surgiu (dentre outras situações ocorridas naquele contexto) justamente pela  sistemática de bônus que premiava os agentes financeiros que realizassem mais operações (financiamentos, derivativos, alavancagens) dentro de determinados períodos, mesmo que elas se apresentassem, inclusive antes do estouro da bolha, frágeis e potencialmente desastrosas, gerando verdadeiro risco sistêmico, comprovado pelo posterior inadimplemento dos financiados.

Em nosso caso, os incentivos criados pela MP poderão levar à sistematização de autuações com base em valores abusivos, mesmo que sem sustentação jurídica.

Outros problemas se apresentam, contudo. E quanto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), praticamente abatido de morte a partir da Operação Zelotes, iniciada em 2015? Estariam os conselheiros representantes da Fazenda, fiscais de carreira, sujeitos aos mesmos incentivos? Seriam premiados por bônus, caso julguem contrariamente ao contribuinte, numa verdadeira “Zelotes às avessas”?

Por esse mesmo diapasão, poderiam as Federações que indicam os conselheiros representantes dos contribuintes instituírem prêmios a votos favoráveis? Talvez nem se precise ir tão longe, considerando que recentes estatísticas demonstram que, na quase totalidade dos casos, os votos de qualidade do Carf, em situações de empate, são proferida em favor da Fazenda Pública.

Recentemente, liminares judiciais foram concedidas para tirar processos de pauta, por receio de julgamento parcial pelos conselheiros fazendários.

Outro detalhe não pode passar despercebido. O dispositivo da MP emprega o termo “arrecadação”, o que denota efetiva receita e não apenas crédito tributário lançado em autos de infração.

Ora, autuações e mesmo decisões finais proferidas pelo Carf ou pela Câmara Superior de Recursos Fiscais não significam receita efetiva, pois para tanto se faz necessário que os créditos sejam inscritos na Dívida Ativa da União, para posterior ajuizamento de execuções fiscais pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Logo, não estaria o governo federal igualmente instituindo calote nos próprios Auditores, fazendo-os crer que terão direito a bônus, quando na realidade isso só seria possível na eventual conversão em renda dos créditos executados, em caso de decisão judicial favorável à União?

Seja como for, pois muito do que aqui se coloca são ainda especulações, o que se pode concluir é que o processo administrativo tributário está tornando-se inviável, tanto pela crescente parcialidade com que se apresenta, como também por toda uma série de antigos vícios de essência. Em prol da Fazenda, não se pode esquecer que é, para dizer o mínimo, “sui generis” que decisões finais em processo administrativo só permitam ao contribuinte contestá-las no Judiciário, quando lhe são desfavoráveis.

Somado a isso, também há estudos empíricos que demonstram a ineficiência do processo judicial de execução fiscal, que além de moroso, estatisticamente, muito pouco reverte em receita real para a União. Tanto assim é que distorções sérias ocorrem nesse sistema, que fazem com que as chamadas ” sanções políticas”  (por exemplo, necessidade de certidões negativas) sejam muito mais eficientes no que diz ao cumprimento das obrigações tributárias do que as execuções.

Não é incomum que processos judiciais, sejam movidos pela Fazenda, sejam pelos contribuintes, levem muitos anos, por vezes décadas, para chegar a termo final.

Talvez seja a hora dos juristas e operadores do direito tributário começarem a pensar em alternativas mais racionais e eficientes, como, por exemplo, a arbitragem e a transação tributárias.

Quem viver, verá.

Autor: Cristiano Carvalho é livre-docente em Direito Tributário (USP), advogado e sócio de Carvalho, Machado e Timm Advogados.

Valor Economico dia 03/03/2017.

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