Assinante do Consultor Municipal pede mais esclarecimentos sobre as tais atividades mistas, que envolvem fornecimento de mercadoria e prestação de serviço. Volta-se, assim, ao velho e batido tema.
A dualidade ICMS x ISS sempre foi assunto tormentoso e tanto a doutrina quanto a jurisprudência ainda carecem de uma “bridge over troubled water”, essa ponte que Simon e Garfunkel tão bem souberam estender sobre as águas revoltas em nossos sentimentos.
Um pouco de ICMS – imposto sobre operações de circulação de mercadorias. O fato gerador é a operação jurídica que propicia a transmissão de titularidade de um bem móvel in commercio. Até aí temos somente a presença do ‘ICM’. O ‘S’, final da sigla, faz o imposto alcançar, excepcionalmente, dois gêneros de serviços: transporte intermunicipal e comunicações. São esses dois serviços e nenhum outro. Qualquer tentativa do ICMS abarcar outros gêneros de serviços seria uma ação nitidamente inconstitucional.
Temos, então:
– uma simples saída de material próprio para autoconsumo – não gera ICMS, pois não ocorre o fenômeno da circulação (transferência de titularidade);
– mercadoria transportada do depósito para a loja da mesma empresa: não gera ICMS, pois não houve mudança de dono da mercadoria;
– empreiteiro que adquire material para aplicar na execução da obra a que está obrigado a construir – não o transforma em contribuinte do ICMS, pois o material é necessário para atender uma obrigação de fazer (o comitente não está “comprando” mercadoria, mas, sim, “tomando” um serviço), comportando-se o empreiteiro como mero usuário final;
– operação de leasing não gera ICMS, pois o arrendador continua sendo o proprietário do bem arrendado. No entanto, é evidente, que quando o arrendador adquire o bem do revendedor para arrendá-lo, aí, sim, o imposto vai incidir, mas sobre o revendedor;
– serviço de instalação e montagem de uma mercadoria comercializada – não gera ICMS o serviço de instalação e montagem, pois os únicos serviços alcançados pelo imposto são comunicações e transporte transmunicipal. O ICMS incidiria apenas sobre a comercialização da mercadoria.
O ISS, por sua vez, tem como fato gerador a prestação de serviços de qualquer natureza, exceto serviços de comunicações e de transporte transmunicipal. Para fins de identificar melhor os tais “serviços de qualquer natureza” há uma lista anexada em lei complementar, reconhecida pela Justiça como taxativa, admitindo-se uma interpretação extensiva horizontal quando a lista utilizar a palavra ‘congêneres’. Ou seja, não basta a Constituição dizer “serviços de qualquer natureza”, essa “natureza” dependerá da decisão política irradiada em lei complementar. A justificativa deriva do fato de a Constituição falar em “definidos em lei complementar”. Vai daí, o que vale é o que está na lista.
Em resumo: gênero de serviço constante na lista gera ISS; gênero de serviço não incluído na lista, não gera ISS. Circulação de mercadorias nunca gera ISS.
Deste modo:
– quando adquiro um quadro numa galeria de arte, não há incidência do ISS, e, sim, do ICMS, pois o quadro, em tal situação, é mercadoria; mas, se encomendo um quadro ao pintor, há incidência do ISS, pois, em tal situação, a obrigação contratada é de fazer, o pintor presta um serviço que consta da lista (subitem 40.01 da lista anexa à LC n. 116/03);
– o pintor, para cumprir sua obrigação de fazer, adquire tela, tinta e moldura, mas, ao me entregar o quadro não há incidência de ICMS, pois a tela, tinta e moldura são meios necessários para cumprimento da obrigação. Esses materiais são custos da prestação do serviço (valores embutidos no preço do serviço). Contudo, se o pintor, agindo como comerciante, me vender a moldura em separado, além de prestar o serviço de pintar o quadro, teremos dois negócios distintos: compra e venda da moldura (ICMS) e obrigação de fazer a obra de arte (ISS);
– a farmácia de manipulação elabora um medicamento por encomenda e destinado a um determinado cliente. Incidência do ISS. Ao entregar o medicamento ao cliente, não está comercializando o recipiente plástico ou de vidro, não havendo incidência do ICMS sobre esta embalagem, por se tratar, apenas, de um meio para cumprimento de sua obrigação. A embalagem é custo da prestação do serviço (valor embutido no preço do serviço);
– a farmácia de manipulação elabora produtos e os comercializa na própria farmácia, para quem desejar comprar (venda de prateleira). Incidência do ICMS. Por não ser encomendado e nem destinado a um determinado cliente, a farmácia está comercializando o produto elaborado, obrigação de dar coisa. A elaboração do produto é tão somente um meio para produzir e o seu custo integra o preço de venda. Todavia, quando a empresa fabricante da embalagem efetua a sua venda à Farmácia, tal operação gera ICMS, e não ISS, conforme nova redação do subitem 13.05 da lista da LC n. 116/03, com a redação dada pela LC n. 157/16.
– se o portão da minha casa estiver danificado e mando consertá-lo na serralheria, este serviço é tributado pelo ISS. Mas, Se em vez de conserta o velho, fizer a encomenda de um portão novo, mesmo que seja sob medida, a serralheria vai pagar ICMS. Alguns tributaristas afirmam que basta ser por encomenda que irá prevalecer a obrigação de fazer e, em decorrência, o ISS. Com a devida vênia, discordo totalmente. A incidência do ISS, em casos assim, somente ocorrerá quando o serviço for prestado diretamente no bem que for entregue pelo encomendante ao prestador do serviço. Quando a encomenda estiver direcionada à fabricação de algo novo, na transformação de um conjunto de matéria prima para criar um produto novo, tal atividade é comercialização/industrialização, com incidência do ICMS (e talvez também do IPI). Mas, pergunta-se, este não seria caso similar à elaboração de pintura de um quadro? A resposta é negativa, pois tudo gira em torno da lista de serviços. Serralheria (ou Serralharia) consta da lista no gênero “Serviços relativos a bens de terceiros” (item 14); pintura de um quadro sob encomenda consta da lista no gênero “Serviços relativos a obras de arte sob encomenda” (item 40). Incide ISS nos serviços de serralheria prestados em bens de terceiros (conserto, restauração, pintura, reforma etc. de um bem pertencente à outra pessoa, geralmente o contratante do serviço). Incide ISS nos serviços de elaboração de uma obra de arte encomendada (criação nova do artista).
Mas, nem tudo é tão simples. O art. 155, § 2º, IX, b da Constituição Federal diz assim: “O imposto previsto no inciso II (ICMS), atenderá ao seguinte: IX – incidirá também: b) sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”.
Para não ficar atrás, a Lei Complementar nº 116/03 retumbou: “Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias”.
Em relação à regra constitucional, praticamente todos os juristas eméritos alardearam de pronto: esta regra refere-se somente aos serviços de comunicações e de transporte transmunicipal, pois seria impossível a própria Carta ampliar o alcance do ICMS para outros serviços (Carrazza, Calmon, Misabel, Barreto, Baptista, Soares de Melo, etc. etc.).
Salientam os mestres a inexistência de “serviços com fornecimento de mercadorias”. Poderiam ocorrer, eventualmente, dois negócios jurídicos distintos: serviços e fornecimento de mercadoria, e cada um a sofrer a incidência tributária pertinente. Mas um só negócio não pode ter duas naturezas, sempre haverá a preponderância de uma delas. Compro um carro com o serviço de emplacamento embutido – ICMS pelo valor total; o paciente é internado no hospital para sofrer uma cirurgia, com direito a receber medicamentos e consumir aquela comidinha horrível que hospital fornece – ISS pelo valor total. O carro e a cirurgia são as atividades preponderantes, o resto é acessório.
Assim, os nossos ilustres juristas rechaçam a ideia da tal “operação mista”, quando mercadoria e serviço se confundem numa só operação ou num só negócio jurídico. Uma das atividades sempre será a preponderante. Contudo, na prática, temos diversos casos do tipo: compro um carpete e a própria loja se incumbe de instalar no local por mim indicado, conforme nossas negociações. Venda da mercadoria e serviço de instalação. Este exemplo é bom para esclarecer que, no caso em si, não há atividade-meio ou atividade-fim. São duas atividades independentes, nada de “atividade mista”. Faz-se o contrato de compra e, caso queira, contrata-se também o serviço. Ocorre, porém, que a loja, usualmente, emite uma única nota fiscal de venda, com o valor total da transação. Ou seja, o valor do serviço de instalação está ‘embutido’ no valor da mercadoria. Incidirá somente o ICMS. E não há como evitar: a loja pode dizer que a instalação foi gratuita, uma espécie de bônus pela compra do carpete, ou qualquer outra alegação. Direito do comerciante (elisão ou elusão?), a não ser que o comitente exija a apresentação das duas notas fiscais. Exigência difícil de acontecer.
E o contrário também pode ocorrer. A empresa foi contratada para produzir cenários para realização de uma ópera no Teatro Municipal, mas, em meio da complexa atividade envolvida (fazer cenário sofisticado é trabalho muito complicado) a empresa é obrigada a fornecer alguns materiais, tipo divisórias, maquetes, pisos etc. Pois bem, nada impede que a empresa emita somente uma nota fiscal de serviços pelo valor total, entendendo-se que os materiais são custos e indispensáveis ao cumprimento da obrigação de fazer. Afinal, o comitente não está interessado em adquirir divisórias, maquetes, pisos etc. O seu interesse é a prestação do serviço.
Como diz um amigo para explicar e justificar o seu divórcio: “é muito complicado”.
Autor: Roberto A. Tauil – maio de 2020.Grupo Editores Blog.