ITCMD – Injustiça Fiscal e Insegurança Jurídica em São Paulo.

por Grupo Editores Blog.

“A quebra da proporcionalidade cria injustiça fiscal até mesmo dentro do mesmo município”

Não obstante minha formação acadêmica na área linguística e contábil, tentarei perpassar, nessa jornada, por conceitos e princípios jurídicos complexos. A partir da expertise que o conhecimento empírico me confere (anos lidando com e estudando exclusivamente ITCMD), clamo que façamos uma reflexão sobre como a determinação da base de cálculo do ITCMD de bens imóveis transmitidos no Estado de São Paulo desrespeita a técnica da proporcionalidade, ferindo o princípio da capacidade contributiva e causando injustiça fiscal e insegurança jurídica.

Imperioso destacar que a transmissão de bens imóveis, no estado de São Paulo, é responsável por mais de 50% de todo o ITCMD arrecadado, considerando dados de 2015 e 2016. Desses, mais de ¾ são imóveis urbanos.

O artigo 9º da lei bandeirante 10.705/00 afirma que a base de cálculo do ITCMD é o “valor venal” do bem ou direito transmitido e o §1º do mesmo artigo sinonimiza “valor venal” como “valor de mercado”. “Valor de mercado”, por sua vez, é uma expressão que tem seu conceito ligado mais diretamente à Engenharia do que, propriamente, ao Direito. A NBR 14653-1, da ABNT, o define como “quantia mais provável pela qual se negociaria voluntariamente e conscientemente um bem, numa data de referência, dentro das condições do mercado vigente”.

Quanto aos bens imóveis, a lei ainda trás o artigo 13, que define os parâmetros mínimos para este “valor de mercado”, quais sejam: o valor fixado como base de cálculo para  lançamento do IPTU, para os imóveis urbanos, e o valor total do imóvel, declarado pelo contribuinte, para efeito de lançamento do ITR, para os imóveis rurais.

Com o objetivo de subsidiar a fixação do que seria o tal “valor venal” ou “valor de mercado”, o governo paulista, por meio do Decreto 55.002/09 deu nova redação ao artigo 16 do Decreto 46.655/02 indicando a utilização, para imóveis urbanos, do valor utilizado pelas prefeituras municipais, para lançamento do ITBI e para imóveis rurais, o valor divulgado pela Secretaria da Agricultura do Estado, ou outro órgão de reconhecida idoneidade. Sobre tais disposições regulamentares pesam inúmeras críticas que fazem gerar, por sua vez, inúmeras ações judiciais questionando eventual inobservância ao princípio da legalidade. Não discorreremos sobre tal celeuma uma vez que nosso objetivo, no momento, é tentar superar toda esta discussão.[1]

O problema na aplicação de tais conceitos é que não contamos com uma normatização ou uma fonte confiável e juridicamente segura de dados que nos permitam sustentar uma fixação do tal “valor de mercado”. Soma-se a isso a quantidade colossal de transmissões que ocorrem em um estado com mais de 45 milhões de habitantes e o resultado é que a quase totalidade das transmissões de imóveis são tributadas utilizando-se como base de cálculo, para imóveis urbanos, o valor da base de cálculo do IPTU ou ITBI, e para os imóveis rurais, o valor divulgado pelo Instituto de Economia Agrícola – IEA, da Secretaria da Agricultura, ou o valor informado no ITR (quando amparado por ação judicial). As exceções ficam por conta de situações muito especiais, como, por exemplo, a existência de avaliação judicial.

O município de São Paulo, por exemplo, utiliza para o ITBI um valor muito próximo ao valor de mercado. Um imóvel urbano paulistano, transmitido por doação, será tributado pelo ITCMD a um valor que refletirá razoavelmente o espírito do que prevê o artigo 9° da lei 10.705/00. Quanto menor o município, no entanto, menor a representatividade dos impostos próprios sobre o patrimônio (IPTU e ITBI) na composição das fontes orçamentárias e maior a importância das transferências constitucionais. Em alguns municípios, o diminuto volume de arrecadação potencial do IPTU e ITBI sequer justificam a existência de uma estrutura fiscalizadora. Percebe-se, com isso, que quanto menor o município, mais subavaliada encontra-se a base de cálculo utilizada para lançamento do IPTU ou ITBI, distanciando-se cada vez mais do que seria o tal “valor de mercado”.

O Estado de São Paulo possui pouco mais de 45 milhões de habitantes. O município de São Paulo conta com cerca de 11 milhões de habitantes e, como dissemos, o ITCMD incidente sobre imóveis urbanos, nesse município, é lançado a um valor muito próximo ao valor de mercado. O município de São José do Rio Preto, por outro lado, com cerca de 450 mil habitantes, não tem valor específico para lançamento do ITBI e lança o IPTU com valores fixados entre 1/3 e 1/4 do valor de mercado e essa mesma base subavaliada é utilizada para lançamento do ITCMD. No município de Paulo de Faria, com pouco mais de oito mil habitantes, por sua vez, é comum encontrar imóveis urbanos tributados pelo IPTU com bases de cálculo fixadas até 50 vezes menor do que seria o valor de mercado (pesquisas nossas). O problema se mostra grave quando verificamos que os municípios paulistas com menos de 50 mil habitantes, somados, concentram mais de 9 milhões de habitantes.

A técnica da proporcionalidade, aplicada à tributação, faz com que o desembolso de cada contribuinte seja proporcional à grandeza da expressão econômica do fato tributado, no entanto, diante desse quadro apresentado, não é difícil que nos deparemos com a esdrúxula situação de encontrarmos três imóveis urbanos, localizados em três municípios diferentes (São Paulo, São José do Rio Preto e Paulo de Faria, por exemplo), com valores de mercado idênticos, suportando uma carga tributária completamente distinta. Imaginemos três imóveis, cada um localizado em um desses três citados municípios, com valor de mercado de 100 mil reais cada: Em São Paulo seria tributado a uma base de cálculo de 100 mil reais; em São José do Rio Preto, 30 mil reais; em Paulo de Faria, 2 mil reais e os contribuintes, donos de patrimônios idênticos, pagariam de ITCMD as quantias de 4 mil reais, 1.200 reais e 80 reais, respectivamente.

A quebra da proporcionalidade, apontada pela situação acima, cria injustiça fiscal até mesmo dentro do mesmo município. Basta imaginar um contribuinte proprietário do imóvel anteriormente citado, no município de Paulo de Faria: enquanto ele pagaria um ITCMD de 80 reais sobre um imóvel com valor de mercado de 100 mil reais (desconsideremos a possibilidade de isenção, para fins didáticos), por ineficiência da técnica utilizada pelo estado para fixar a correta base de cálculo, um proprietário de um veículo com valor de mercado (pesquisado na Tabela Fipe) de 10 mil reais, residente no mesmo município, pagaria o valor de 400 reais.

O valor de arrecadação perdido pelo estado, nos atuais tempos de acentuada crise fiscal, é facilmente estimável na casa das centenas de milhões de reais.

Outro problema acarretado pela atual sistemática de fixação de base de cálculo de imóveis é a insegurança jurídica. Por falta de uma fonte juridicamente segura para subsidiar a fixação da base de cálculo, o contribuinte, obrigado que é a antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, já que o imposto é lançado (na maioria das vezes) por homologação, fica sujeito à discordância do Fisco e a verificações fiscais posteriores, resultando em eventual lançamento de ofício de diferenças porventura apuradas, inclusive com a aplicação de juros e multa de mora, multa punitiva e perda integral do desconto concedido com base no artigo 31 do Decreto 46.655/02.

Quanto aos imóveis rurais, a situação também carece atenção. A celeuma envolvendo a alegação de possível inobservância do princípio da legalidade do Decreto 55.002/09 faz com que diversas ordens judiciais obriguem a Fazenda Paulista a aceitar o valor declarado pelo contribuinte à Receita Federal, quando do lançamento do ITR, valor este, normalmente, muito inferior ao valor de mercado. Por esta razão, aumenta-se o custo de compliance dos que têm que se socorrer do Poder Judiciário e cria uma situação de injustiça fiscal para com aqueles que preferem pagar seu imposto calculado administrativamente.

Outro problema que se verifica na utilização dos valores divulgados pelo IEA como base de cálculo dos imóveis rurais, e que também é causa de insegurança jurídica, é o fato de os valores aplicáveis a um determinado ano serem divulgados apenas em meados do segundo semestre desse referido ano, ou seja, os valores utilizáveis para determinação da base de cálculo de imóveis rurais de 2017 apenas serão divulgados em meados do segundo semestre de 2017. Com isso, as transmissões tributáveis pelo ITCMD ocorridas no primeiro semestre de 2017 não contam com uma fonte de consulta. Opta-se, normalmente, nessa situação, pela utilização dos valores divulgados para o ano de 2016 (deve-se, nesse caso, aplicar a atualização prevista no §1° do Artigo 15 da Lei 10.705/00). Ocorre que, quando o valor aplicável para o ano de 2017 é divulgado, verifica-se que é diferente daquele utilizado e o contribuinte fica sujeito a lançamentos de ofício das diferenças apuradas ou torna-se credor de um valor pago a maior a título de imposto que, para ser restituído, depende de um penoso e burocrático procedimento administrativo.

Esta última situação de insegurança jurídica é reclamação constante dos Tabeliães que costumam figurar como responsáveis solidários (responsabilidade subsidiária, pela doutrina) em Autos de Infração e Imposição de Multa lavrados contra contribuintes que eventualmente recolheram, na opinião do Fisco, valores menores que o devido.

Diversos Estados da Federação utilizam-se do expediente de designar agentes do Fisco para proceder a avaliações dos imóveis e, assim, fixar a base de cálculo para o ITCMD. Esse procedimento, embora resolva a questão do GAP tributário (diferença entre a arrecadação efetiva e a arrecadação potencial) demandaria um uso intensivo da já escassa mão de obra de agentes do Fisco além de proporcionar uma indesejada discricionariedade excessiva na determinação dos valores dos imóveis, o que, fatalmente, levaria ao contencioso administrativo e judicial, emperrando a já vagarosa máquina pública.

A solução para a complexa situação é simples (como são, normalmente, simples, as soluções para os complexos problemas) e mora ali ao lado, mais precisamente na Lei Paulista 13.296/08, que instituiu o IPVA. Para o IPVA, a lei define que o valor da base de cálculo é o “valor de mercado” do veículo usado, constante da tabela publicada pelo Poder Público, considerando determinados critérios (marca, modelo, etc.). O Estado de São Paulo, por autorização legal, firma convênio com instituições (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, por exemplo) e divulga, ao final de um ano, o valor a ser utilizado como base de cálculo, para o IPVA do ano seguinte.

A contratação de institutos de pesquisa para ajudar na determinação da base de cálculo de tributos, aliás, não é novidade para o governo paulista, a Lei 6.374/89 autoriza a utilização de pesquisas feitas por institutos de pesquisa de mercado para a fixação de preços a serem utilizados como base de cálculo do ICMS apurado por substituição tributária (artigo 28-B da Lei 6.374/89).

Procedendo às devidas alterações legislativas e procedimentais, o Estado de São Paulo poderia demandar a um instituto de pesquisa de preços de mercado a tarefa de buscar a média dos valores de mercado dos imóveis (valores territoriais e de edificação, por metro quadrado), levando em consideração critérios como padrão social, localização, tamanho do imóvel, etc., divulgar os valores de mercado dos imóveis, por meio de tabelas, vinculados ao CEP do imóvel e, dessa forma, indicar para o contribuinte, com antecedência, o valor que ele deveria utilizar como base de cálculo do imóvel para fins do ITCMD.

Assim, o Estado de São Paulo estaria transformando receitas potenciais em efetivas, aumentando a arrecadação tributária sem aumentar tributos e, ao mesmo tempo, promovendo justiça fiscal e segurança jurídica para Tabeliães e contribuintes.

[1] Uma análise pormenorizada da formação da base de cálculo, para incidência do ITCMD, dos mais diversos tipos de bens pode ser encontrada no livro Manual do ITCMD-SP, de minha autoria em parceria com Eduardo Moreira Peres, publicado pela Editora Letras Jurídicas.

* Agente Fiscal de Rendas – SP. Formado em Letras pela Unesp e Ciências Contábeis pela Universidade Católica Dom Bosco. Coautor do Livro MANUAL DO ITCMD-SP, pela Editora Letras Jurídicas.

Fonte: https://blogdoafr.com/2017/07/05/itcmd-injustica-fiscal-e-inseguranca-juridica-em-sao-paulo/

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