A Guerra Fiscal entre os estados brasileiros é um dos mais perversos mecanismos de distorções fiscais no país. Na busca por atrair investimentos, governos estaduais ultrapassam suas competências constitucionais com intervenções viciadas e, muitas vezes, mal-sucedidas. Há, porém, aspectos concretos e relevantes que precisam ser considerados para um julgamento correto desse tipo de decisão.
Uma análise da evolução dos textos constitucionais brasileiros – desde primeira, de 1824, outorgada por D. Pedro I, passando pela Constituição da República, de 1891, até o texto aprovado em 1988 – nos trás uma evolução da presença de referências às atividades industriais e comerciais, que se tornavam cada vez mais importantes para o desenvolvimento do país. A questão tributária sempre ocupou ponto central no debate, sobretudo sobre tributos que incidem sobre o consumo, que se tornaram centrais no relacionamento entre os estados brasileiros.
Um exemplo dessa preocupação é a Lei Federal de n° 4.625, de 1922, o primeiro registro de tributação sobre o consumo que se tem notícia no Brasil. A lei instituía, além do imposto sobre a renda, o Imposto sobre Vendas Mercantis (IVM), um tributo de competência da União. Pouco depois, ele passaria a recair sobre as operações de consignação, passando a ser conhecido como Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC).
A partir dos anos 1980, com a redemocratização do país e as mudanças da conjuntura global, uma nova ordem econômica emerge com preceitos que exigiriam a redução do papel protagonista do Estado na economia e a dinamização do mercado pelo fomento à iniciativa privada. Assim, o tamanho e o papel do Estado começaram a ser pauta de grandes debates institucionais. Junto com ele, o debate sobre a tributação também se acirra.
A Constituição Federal de 1988, já nesse contexto, trouxe um novo marco ao sistema econômico nacional. A resposta democrática ao “milagre” desenvolvimentista do período de ditadura militar inspirou a defesa da cidadania e realinhou o Estado quanto a sua função de interventor na economia. O Brasil passou a ter como objetivos, dentre outros: a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais[1].
O texto constitucional legislou, também, sobre as competências de cada ente federado. Compete à União legislar sobre normas gerais de Direito Econômico, por isso até ventilou-se, por vezes, a possível criação de um Código de Direito Econômico. Aos Estados e ao Distrito Federal, compete concorrentemente legislar no atendimento às peculiaridades locais. Os municípios, por sua vez, não foram incluídos na repartição constitucionais de competências legislativas quanto ao Direito Econômico, restando apenas suplementar as normas federais (de caráter geral) e estaduais (de caráter específico), no que for de interesse local[2].
Dentro do escopo do Direito Econômico, certamente a tributação possui um papel central nessa divisão proposta. Na doutrina de Hugo de Brito Machado, por exemplo, encontramos: “A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez a única arma contra a estatização da economia”[3].
O imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), cerne do debate da Guerra Fiscal, foi criado pela Constituição de 1988. Herdeiro do imposto sobre circulação de mercadorias (ICM) criado pela Emenda nº 18 à Constituição de 1946, editada em 1965, o novo imposto também assimilava todo o debate sobre o comércio interestadual desde as primeiras Constituições do país.
Quando de sua criação, o ICM – que era de competência dos estados – se diferenciou do IVC pela aplicação do princípio da não-cumulatividade, copiado do modelo francês do Imposto sobre Valor Adicionado – IVA, que prevê a dedução do valor pago em cada operação anterior do imposto devido, incluindo as operações interestaduais. O ICM trazia, também, limites constitucionais para as alíquotas aplicáveis aos produtos, determinando que a alíquota deveria ser igual para um mesmo produto em todo o território nacional. Assim, evitaria disparidades na cobrança entre os estados brasileiros, acabando com o uso do ICM como instrumento de intervenção política entre os estados.[4]
A esta altura, o ICM passou a ser a principal fonte de arrecadação dos Estados, o que marca o início do que chamamos hoje de Guerra Fiscal.
A Reforma Tributária de 1966, que substituiu o antigo IVC pelo ICM, promoveu a centralização tributária nas mãos da União e reduziu sobremaneira a autonomia dos estados. A partir deste momento, estava vedada a criação de novos impostos pelos estados, e o Senado passou a ter a competência para o estabelecimento de alíquotas internas do ICM. O próximo passo seria o Governo Federal passar a interferir no disciplinamento dos conflitos fiscais entre estados, unificando e coordenando as reuniões entre secretários das fazendas estaduais[5], o que aconteceu nos anos 1970.
Pouco depois, em 1975, foi criado o Conselho Nacional de Política Fazendária, o CONFAZ, para tentar solucionar o crescente embate fiscal entre os estados, mas ele não obteve muito sucesso. Os estados desenvolveram os “regimes especiais”, uma espécie de contrato entre o Estado e o contribuinte, no qual se permitem certos benefícios tributários que compreendem desde a redução de alíquotas, até medidas compensatórias aos investimentos das empresas no respectivo Estado.
A criação do ICMS resultou num aumento significativo das receitas estaduais, uma vez que o novo imposto incorporou a tributação sobre a prestação de serviços de transporte interestaduais e de comunicações. Isso sem contar impostos sobre minerais, energia e combustíveis, que foram reunidos no ICMS. O que não ajudou em nada a solucionar o problema da Guerra Fiscal.
Política Industrial Brasileira: o problema não solucionado
Políticas industriais são o conjunto de ações e instrumentos propostos pelos países com o intuito de, por meio do crescimento do setor industrial, aumentar as taxas de desenvolvimento econômico. A política industrial pode ser interpretada como o esforço governamental de propor um projeto de médio e longo prazo composto por uma série de políticas públicas que fomentem e estimulem determinados setores avaliados como importantes para o crescimento econômico do país.
Tais políticas são, portanto, complementares ao debate tributário que tentamos estabelecer na primeira parte deste artigo. Um desenvolvimento econômico equilibrado e bem planejado seria capaz de dirimir as diferenças entre os estados do país, evitando a busca desesperada por recursos, que se traduz na Guerra Fiscal.
Nossas políticas, pelo menos nos últimos 50 anos, não conseguiram estabelecer essa equidade e pode-se afirmar que há no Brasil uma carência de regulação e infraestrutura jurídica necessárias ao sucesso das ações.
Até o final da década de 1970, a política industrial brasileira foi extremamente protecionista, valorizou o modelo de substituição de importações, priorizando a redução do coeficiente de importações e a expansão da capacidade produtiva. Na década de 1980, as altas taxas de inflação e a elevada dívida externa levaram os governos a não priorizar a política industrial.
Nos anos 1990, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso tinham a concepção de que uma política econômica que promovesse a estabilidade era a melhor forma de o governo fomentar o setor industrial. Com Lula e Dilma, apesar de terem lançados políticas industriais oficialmente, a falta de objetivos bem definidos e a conjuntura desfavorável também não deixaram com que essas políticas tivessem os efeitos desejáveis sobre nosso parque industrial.
Uma análise bibliográfica sobre o papel das políticas industriais sólidas e de longo prazo mostra que, quando bem implementadas, elas estabelecem o potencial de desenvolvimento de uma nação. Isso está associado à ideia de que tal política pública é condição fundamental para a superação das restrições macroeconômicas ao crescimento econômico, sobretudo pelo investimento em inovação.
A política industrial baseada na inovação transforma a estrutura produtiva do país, sobretudo em políticas voltadas à inovação tecnológica. O processo de desenvolvimento tecnológico e científico depende de estratégias estatais de longo prazo e da orientação dos investimentos, além de incentivos ao setor privado. A reconstituição dos caminhos das principais inovações como o ambiente digital, a nanotecnologia, a biotecnologia e a eletrônica demonstram que o Estado tem mais predisposição do que o setor privado em enfrentar o ambiente de incertezas radicais, investindo nos estágios iniciais do desenvolvimento de novas tecnologias. Por essa razão, Mazzucato (2014) confere ao Estado um papel empreendedor.
Em países como o Brasil, nos quais o processo de industrialização foi tardio e a iniciativa privada frágil, o acúmulo de capital se dá na estrutura do Estado. Nesse cenário, a atuação econômica e empresarial se tornou inevitável como instrumento do desenvolvimento e como alternativa à concessão de setores estratégicos à exploração da iniciativa privada estrangeira.
Isso fez com que o Brasil se preocupasse sempre muito mais com a proteção aos seus mercados do que com o real incentivo à livre-iniciativa ou ao seu potencial empreendedor. A constituição de 1988 não conseguiu vencer essa barreira, o que vem tentando ser feito nas últimas décadas por meio de emendas constitucionais e de legislação ordinária que estão transformando o perfil de atuação do Estado brasileiro.
A ausência de uma política industrial nacional efetiva e eficaz incita os estados a criar tais mecanismos para atrair investimentos para suas regiões. Enquanto a atuação do Estado não for equilibrada e eficiente no Brasil, a Guerra Fiscal entre os estados continuará tendo grande relevância como alternativa viável para a atração de investimentos e inovação para as diversas regiões do país.
Não se pode negar a inconstitucionalidade dos benefícios fiscais dos Estados. Todavia, a ausência de uma política industrial efetiva e eficaz no plano federal, permitiu que a disputa entre estados, ávidos por receita e por desenvolver os seus territórios, fizesse com que cada vez mais mecanismos de compensação fossem editados.
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[1] Artigo 3º da Constituição Federal
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[2] Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
BRASIL. Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11.mai.2017.
[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.55.
[4] YAMAO, C. A HISTÓRIA DO IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS – DO IVM AO ICMS. Revista Jurídica Unicuritiba, v. 3, n. 36, 2014. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/issue/view/79. Acesso em: 21.mai.2017.
[5] LEMBO, C.; CAGGIANO, M. H. S. Direito Constitucional Econômico – uma releitura da Constituição Econômica Brasileira de 1988. 1. ed. São Paulo: Manole, 2007. p. 46
Autores:
Maria Elisa Curcio – Diretora de Relações Institucionais do Hondatar e Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Tato Carbonaro – Gestor de Relações Institucionais e Internacionais da Aberje e Doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP