Os ares reformistas estão em toda parte. Contudo, a sensação será de pouca ou nenhuma evolução, caso não sejam atacados os verdadeiros problemas estruturais do país. No caso da Reforma Tributária, não basta mudar os tipos de tributos ou seus rótulos, se o modelo de fiscalização, lançamento e cobrança do crédito tributário continuar o mesmo: burocrático, lento, custoso e antiquado.
Como contribuição para os projetos de reforma do sistema tributário em curso no Congresso Nacional, além de modificação da legislação material dos tributos, é fundamental rever, com urgência, o modelo formal de solução de conflitos em matéria tributária, um dos mais complexos que existem no mundo.
Um bom exemplo de alternativa para o que parece ser mais urgente vem da Argentina, onde o Poder Legislativo acaba de autorizar o Executivo a apresentar, dentro de um ano, lei de reforma do sistema tributário.
Aqui, poderia o Congresso Nacional, mantendo incólumes o texto constitucional e o Código Tributário Nacional, sobre os quais parece não haver consenso suficiente, aprovar os critérios para que o Executivo elabore o conteúdo de Lei Delegada, com resolução que reserve o texto à apreciação do projeto pelo Congresso Nacional (artigo 68, parágrafo 3º da Constituição), para uma ampla revisão da legislação tributária em vigor. A Lei Delegada poderia atuar sobre tudo quanto “inferniza” o quotidiano do contribuinte: renovação dos métodos de aplicação dos tributos existentes, simplificação das formas de cumprimento da legislação tributária, atualização e modernização dos procedimentos de fiscalização e controles, aprimoramento do regime de multas, e, principalmente, uma ampla reforma do modelo de solução de conflitos em matéria tributária.
Ao participar da 51º Assembleia Geral do Centro Interamericano de Administraciones Tributarias (Ciat), que acontece em Assunção, no Paraguai, nos dias 25, 26 e 27 de abril, que tem como tema: “os Avanços das Administrações Tributárias para uma maior equidade fiscal”, percebe-se claramente que os distintos países estão preocupados com a reforma das suas legislações para melhor relação com os contribuintes, com transparência, compliance, simplificação, ampliação das comunicações eletrônicas e rápida solução dos conflitos.
O quadro brasileiro de conflitividade tributária é de extrema urgência e preocupação. Não pode esperar o fim de crises política, econômica ou de outra natureza. E, em muito, decorre da complexidade do sistema, das dificuldades de comunicação com os contribuintes, da ausência de medidas preventivas de conflitos, controle de riscos adequados e de uma burocracia exagerada e nem sempre transparente na etapa de aplicação ou dos controles tributários.
Conforme o Anexo V da proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2018, apresentada este mês pelo Executivo, o estoque de dívida ativa de 2016 é de R$ 1.844.964.400.000,00 (sim, mais de um trilhão e oitocentos bilhões), com crescimento de 16% em relação ao ano anterior, do qual a arrecadação limitou-se a tímidos R$ 13.394.400.000,00. Não obstante os esforços louváveis dos juízes federais e de operosos procuradores da fazenda nacional, a verdade é que a recuperação deste passivo de dívidas tributárias ainda está muito aquém do esperado. Culpa de uma lei superada e antiquada, que é a Lei 6.830, de 1980. Sozinha, ela não tem capacidade de entregar a celeridade que a sociedade e a Administração Pública desejam.
E para a dívida não constituída como “dívida ativa”, tem-se outro montante relevante, ainda que a maior parte poderá ser adimplida até final dos procedimentos. Conforme consta da exposição de motivos da Medida Provisória 766 de 2017 (PRT), a Receita Federal conta com R$ 1,54 trilhão – total de créditos ativos (devedores, parcelados e com exigibilidade suspensa), dos quais R$ 1,20 trilhão seria vinculadora tributos exigibilidade suspensa (e, destes, R$ 983,26 bilhões em processos administrativos nas DRJ e no Carf – 63,3% do total; e R$ 217,86 bilhões de créditos com exigibilidade suspensa por processos judiciais – 14,6%).
Quanto à celeridade de julgamentos, tampouco tem-se algum alento. Segundo o importante “Relatório Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os processos de execução fiscal são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário, de 91,9%, com aproximadamente 39% do total de casos pendentes, o maior de todos os analisados no relatório. Para melhor compreensão, indica o Relatório que de cada 100 processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2015, apenas 8 foram baixados.
Para enfrentar toda essa problemática, temos proposto, já de algum tempo, algumas medidas urgentes, como: 1) redução de litígios em varas de execuções; 2) ampliação de medidas preventivas na fase de lançamento tributário; 3) reforma da legislação de execução fiscal e do processo administrativo; 4) emprego da conciliação em todos os processos tributários; 5) uso da “arbitragem tributária” (na linha da experiência de Portugal); e 6) adoção de medidas alternativas de solução de conflitos, como recuperação tributária, transação em matéria tributária (artigo 171 do CTN) e outros.
Um dado que evidencia larga dificuldade para reforma da lei de execuções é a conversão dos depósitos em renda em favor da União, a partir das garantias para apresentar embargos pelos contribuintes. Como consta da LDO, os depósitos judiciais e extrajudiciais, na forma da Lei n 9.703, de 1998, totalizaram R$ 171,8 bilhões no período de 1998 até dezembro de 2015. Resta, hoje, um saldo de RS 130,9 bilhões de depósitos judiciais e extrajudiciais dos processos pendentes de decisão definitiva.
A legalidade é o estado natural de qualquer República, mormente em matéria de tributos. Por isso, urge que todos os atos de aplicação e exigibilidade do tributo sejam acompanhados de máximo controle. No império da legalidade, não pode haver espaço para discricionariedade e arbítrios. Porém, não se pode confundir observância à legalidade como excesso de procedimentos, exageros de burocracia incomensurável e distanciamento entre Fisco e contribuinte na solução de eventuais conflitos.
É urgente no Brasil uma atitude contundente de desburocratização. O custo e excessos da burocracia agrava-se com gastos públicos redundantes, deteriora o ambiente de negócios, amplia o chamado “custo Brasil”, desestimula investimentos, favorece corrupção e leva a perdas relevantes de receitas públicas.
Sensível a estes aspectos, na semana passada ocorreu em Lisboa, a “Mesa Redonda sobre Arbitragem é Transação em Matéria Tributária”, na sala do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Uma iniciativa patrocinada pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), para um debate entre professores e autoridades brasileiros e portugueses sobre medidas para superação desse desafio do enfrentamento dos problemas atinentes ao passivo tributário brasileiro.
Os objetivos principais, dentre outros, a serem examinados pelo Grupo era os seguintes: (i) conhecer a experiência portuguesa e a europeia quanto à utilização da arbitragem e da transação em matéria tributária; (ii) analisar os principais desafios do lado brasileiro em relação ao tema; (iii) colher subsídios para o aprofundamento das questões debatidas, por meio de um Grupo de Trabalho a ser constituído. O ministro Gilmar Mendes, quando presidente do Supremo Tribunal Federal, assinou o II Pacto Republicano e, no conjunto de medidas, estavam justamente os projetos de reforma da Lei de Execuções Fiscais e o da Lei Geral de Transação Tributária. Portanto, compreende a relevância e urgência de avançar neste tema.
A experiência portuguesa da arbitragem tributária é virtuosa e profundamente meritória. Constitui-se numa forma de resolução do litígio por árbitro escolhido pelas partes ou designado pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), que é o centro de arbitragem, cuja constituição foi promovida pelo Ministério da Justiça. A duração média de decisão por processos tem sido de quatro meses, com um total de processos já julgados na ordem de 3 mil casos. Conta com 272 árbitros inscritos.
O Brasil já adota a arbitragem como método de solução de conflitos nos tratados internacionais para evitar a dupla tributação firmados nos últimos anos. É só uma das sugestões, além de tantas outras, que se pode examinar para reformar o modelo de cobrança do crédito tributário, para dar à cobrança das dívidas tributárias celeridade, eficiência, economicidade e promover uma efetiva justiça tributária.
Em conclusão, a dificuldade está em concretizar justiça em matéria tributária onde a demora gera custos recíprocos, ao Estado e aos contribuintes. Por isso, temos insistido há mais de uma década sobre a necessidade de substituir a Lei 6.830/80 e o Decreto-Lei 70.235/72 por regimes processuais mais céleres e simplificados, com métodos alternativos de soluções de controvérsias, como a conciliação, a arbitragem ou outro que permita solução rápida do litígio, para recebimento do tributo, em favor de toda a sociedade, mas também para liberação do contribuinte devedor do julgo das cobranças intermináveis e muitas vezes reconhecidamente ilegais. Esta é uma verdadeira revolução do sistema tributário.
O devido processo legal não pode ser um ônus para o cidadão, e muito menos um expediente que gere perdas de recursos para o Estado. A jurisdição deve ser meio de estabilidade da democracia e de fortalecimento do Estado, pelo controle da ação dos poderes, e não instrumento ou fonte estimuladora de litígios.
Autor: Professor Heleno Taveira Torres – Conjur.