Quando da edição da Lei Complementar 157/2016, alguns dos seus dispositivos foram vetados pela Presidência da República. Eles determinavam o deslocamento da competência tributária para a cobrança do ISS, do município em que estabelecido o prestador do serviço para aquele em que localizado o seu tomador.
Esses vetos se deram sob o argumento de que essa atribuição de competência ao município de destino propiciaria potencial perda de eficiência na arrecadação tributária, além de ocasionar aumento de preços decorrente do incontornável acréscimo de custos de conformidade que as empresas dos setores envolvidos passariam a ter que suportar. Os serviços abrangidos por essas regras eram os seguintes:
– serviços de planos de saúde em geral (itens 4.22, 4.23 e 5.09);
– serviços prestados por administradoras de cartões de débito e crédito e demais descritos no subitem 15.01 (“administração de fundos quaisquer, de consórcio, de carteira de clientes, de cheques pré-datados e congêneres”); havia, nos dispositivos vetados, previsão no sentido de que os terminais eletrônicos ou as máquinas das operações efetivadas pelas administradoras de cartões de débito e crédito deveriam ser registrados no local do domicílio do tomador do serviço (artigo 6, parágrafo 4º, da LC 116/03);
– serviços de agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de franquia (franchising) e de faturização (factoring) (item 10.04); e
– serviços de arrendamento mercantil (leasing) de quaisquer bens, inclusive cessão de direitos e obrigações, substituição de garantia, alteração, cancelamento e registro de contrato, e demais serviços relacionados ao arrendamento mercantil (leasing) (15.09).
Nas razões do veto relativas aos contratos de leasing, consignou-se, também, que “os dispositivos [então vetados] contrariam a lógica de tributação desses serviços, que deve se dar no local onde ocorrem a análise do cadastro, o deferimento e o controle do financiamento concedido, e não em função do domicílio do tomador dos serviços”.
Outra transferência de competência para o município em que localizado o tomador do serviço, também vetada pela Presidência da República, mas recuperada pelo Congresso Nacional, foi a prevista no artigo 3º, parágrafo 4º, da LC 157/16, segundo o qual o imposto passa a ser devido no município de destino, na hipótese de inobservância, por parte da legislação do município de origem, da alíquota mínima de 2% do ISS, ou da proibição de que o imposto seja objeto de concessão de isenções, ou de quaisquer incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, da qual resulte, direta ou indiretamente, carga tributária menor do que a decorrente da aplicação daquela alíquota mínima.
Segundo as razões desse veto, “os dispositivos [então vetados] imputariam elevado custo operacional às empresas. Além disso, a definição da competência tributária deve vir expressamente definida em lei complementar, não cabendo sua definição a posteriori, como pode ocorrer nas hipóteses previstas pelos dispositivos”.
Insatisfeitas com os vetos acima referidos, as administrações tributárias de vários municípios se mobilizaram pela sua derrubada no Congresso Nacional, sob o argumento de que, sem as regras originalmente inseridas no projeto de que resultou a LC 157/16, haveria grande concentração da arrecadação do ISS nos grandes municípios, ou nos municípios que praticam alíquotas efetivas de ISS inferiores a 2%. Nesse sentido, veja-se a seguinte manifestação extraída do boletim publicado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM):
“A Confederação entende que a ação da Presidência da República desconfigurou o projeto como um todo. A proposta era considerar a tendência observada nos sistemas tributários mundo afora de que o imposto sobre circulação seja devido no destino, onde se localiza o usuário final daquela operação, e não na origem — onde se localiza o fornecedor do bem ou serviço daquela operação. Com o texto retirado pelo veto, seria mais provável atingir justiça fiscal”.
No dia 30 de maio, o Congresso Nacional derrubou o veto dos referidos dispositivos, contando, inclusive, com o aval da base governista, que havia sido liberada para a votação, em razão de acordo costurado entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. A medida teve apoio de 49 senadores e 371 deputados. Apenas um senador e seis deputados votaram pela manutenção dos vetos.
Não há que se duvidar da possibilidade jurídica de se atribuir ao município de destino, em que localizado o tomador do serviço, a competência para a cobrança do ISS. Essa, inclusive, já é regra adotada pela própria LC 116/03, em algumas hipóteses.
De fato, entre os diversos elementos de conexão previstos na LC 116/03 para a atribuição de competência tributária (local do estabelecimento prestador, local da prestação do serviço, local dos bens a que se refere o serviço, local da fruição do resultado do serviço etc.), o do local do domicílio do tomador do serviço é o que se aplica aos serviços mencionados nos incisos I (serviços importados), XVI (vigilância ou monitoramento de pessoas ou de bens móveis) e XX (cessão de mão de obra) do artigo 3º da LC 116/2003.
Portanto, a tributação no destino não seria novidade legislativa trazida pela LC 157/16. Há, contudo, que se acentuar a excepcionalidade dos casos em que esse critério de conexão pode e deve ser aplicado.
Nesse sentido, José Eduardo Soares de Melo:
“Doravante, e em princípio, para efeito de fixação de competência objetivando o auferimento do ISS: deverá ser considerado o município, do estabelecimento do prestador; e como exceção (no caso de inexistência de estabelecimento prestador no Município) o município do local onde se situar o domicílio do prestador. Em casos excepcionais (serviços provenientes do exterior, ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do país; e serviços aludidos no artigo 3o da LC 116/03), ignora-se o estabelecimento (ou domicílio) do prestador (localizado no exterior), sendo considerado o estabelecimento do tomador ou do intermediário” (em ISS – Aspectos teóricos e práticos. Atualizada com a LC 116. 3ª ed. São Paulo. Dialética, 2003. p. 157; grifei).
E Susy Gomes Hoffman:
“(…) em substituição ao Decreto-lei 406/68 — que veiculava normas gerais de direito tributário — em julho de 2003 foi promulgada a Lei Complementar 116/03 que fez a seguinte previsão sobre a competência do Município para a cobrança do ISSQN: em caráter geral, deve ser considera ocorrida a prestação de serviços no Município em que estiver o estabelecimento do prestador; em caráter excepcional, deverá ser considerada ocorrida a prestação dos serviços no Município em que estiver estabelecido o tomador dos serviços ou em que ocorrer efetivamente o serviço indicado. As exceções estão previstas no texto da lei” (Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 105/2004, p. 86; grifei).
Aí reside o cerne da questão em exame: em razão da excepcionalidade da sua utilização, o critério do destino seria o adequado para a definição de competência da tributação dos serviços objeto dos vetos derrubados pelo Congresso Nacional?
Parece-me que não. Explico.
Como já tive a oportunidade de comentar neste espaço, ao julgar a quem se atribuiria competência para a cobrança do ISS no âmbito dos contratos de leasing, o STJ constatou que as atividades realizadas no âmbito desses contratos são, em regra, realizadas por estabelecimentos localizados em mais de um município. De fato, há o estabelecimento em que se dá a assinatura do contrato, a captação do cliente e a coleta das suas informações; há aquele em que está localizada a equipe técnica responsável por operacionalizar o financiamento e concedê-lo, ao final; e, ainda, aquele em que ocorre a entrega do bem financiado.
Essa diversidade de estabelecimentos localizados em municípios distintos, aliada ao fato de que todos estão, de alguma forma, envolvidos com a execução do contrato de leasing, propiciou a discussão sobre qual, entre eles, seria o competente para fazer incidir o imposto.
Certamente sob a influência do precedente do STF (RE 592.905), pelo qual o núcleo da operação de arrendamento mercantil é a concessão do financiamento do bem em si, a 1ª Seção do STJ decidiu no sentido de que o município competente é aquele em que “a relação é perfectibilizada, assim entendido o local onde se comprove haver unidade econômica ou profissional da instituição financeira com poderes decisórios suficientes à concessão e aprovação do financiamento – núcleo da operação de leasing financeiro e fato gerador do tributo” (REsp 1.060.210 – SC).
Esta, portanto, foi a conclusão a que chegou o Poder Judiciário e, também, o Poder Executivo (como demonstram as razões de veto a que me referi no início desta coluna): o município competente para a tributação das atividades exercidas no âmbito do contrato de leasing é aquele em que estiver localizado o estabelecimento que concentre poderes decisórios concernentes à concessão e à aprovação do financiamento, que é o núcleo do fato gerador do tributo.
O legislador, portanto, não poderia (ou, pelo menos, não deveria) se afastar desse parâmetro (porque é o que se relaciona com o fato gerador do tributo), quando da escolha do critério de conexão aplicável aos contratos de leasing.
E a tributação no destino não o atende, tendo em vista que o município em que localizado o tomador do serviço não será necessariamente aquele em que o estabelecimento que concentra os poderes decisórios a que me referi acima estará localizado. E a mesma conclusão deve se aplicar aos demais serviços objeto da mesma celeuma (cartões de crédito, seguros de saúde etc.).
Corretos, portanto, os Poderes Judiciário e Executivo, e equivocado o Poder Legislativo.
Não bastasse a inadequação jurídica da escolha, há ainda a inadequação prática que dela decorre, tendo em vista o enorme custo de conformidade a que passaram a estar sujeitos os contribuintes envolvidos.
São inúmeros e variados os transtornos a que serão acometidos os contribuintes sujeitos a essas regras, e alguns deles já foram abordados pela doutrina especializada[1]. No Brasil, esse ônus é ainda maior, em face do tamanho da Federação brasileira. De fato, em situações tão costumeiras quanto o uso de um plano de saúde ou um cartão de crédito, os contribuintes prestadores desses serviços poderão se ver subordinados a legislações de conteúdos absolutamente diversos, em mais de 5 mil municípios.
Mandatória, portanto, a unificação dessas regras, como muito bem acentua Alberto Macedo, em artigo publicado na ConJur, intitulado Vetos na LC 157/2016 evitam explosão de custos de conformidade. Destaco o seguinte trecho do artigo:
“Acontece que a peculiaridade de o ISS ser um imposto de competência tributária de 5.570 municípios, aliada ao fato de tributar bens imateriais, fazem com que o sucesso da implementação da sua incidência no destino não dependa somente de previsão legal. Em muitos casos, essa incidência no destino é inviável economicamente — pelo menos enquanto não houver normas gerais uniformes de cumprimento de obrigações principais e acessórias aliadas a um sistema eletrônico único de controle e cobrança nacional desse imposto — à luz do elevado custo de conformidade para as empresas cumprirem a diversidade de obrigações de, no limite, milhares de municípios.
(…)
Assim, para aqueles casos em que as premissas para implantação da incidência do ISS no destino são respeitadas, demanda-se, primeiro, redação cuidadosa e precisa do texto legal; e segundo, necessidade prévia de estruturação de solução tecnológica única, a nível nacional, que viabilize, com o menor custo possível para as empresas, o cumprimento de suas obrigações perante as Administrações Tributárias, sob pena de se inviabilizar o negócio que se pretende tributar, em algumas localidades”.
Há, portanto, conforme vasta jurisprudência do STJ[2], que se observar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade quando da elaboração e aplicação de regras instituidoras das obrigações acessórias em exame.
É o que se verifica do exame da ementa abaixo transcrita:
“TRIBUTÁRIO. (…) MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. INAPLICABILIDADE (…) PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. 1. A sanção tributária, à semelhança das demais sanções impostas pelo Estado, é informada pelos princípios congruentes da legalidade e da razoabilidade. 2. A atuação da Administração Pública deve seguir os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar. 3. A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade “aquilo que não pode ser“. A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade revela que nem todos os meios justificam os fins. Os meios conducentes à consecução das finalidades, quando exorbitantes, superam a proporcionalidade, porquanto medidas imoderadas em confronto com o resultado almejado” (REsp 728.999/PR, 1ª Turma, rel. min. Luiz Fux, DJ 26/10/2006; grifos meus).
Logo, seja por inadequação jurídica, seja pelo exacerbado custo de conformidade provocado, andou mal o Congresso Nacional ao derrubar os vetos à transferência, ao município de destino, da competência para a cobrança do ISS sobre os serviços em exame.
A mesma conclusão é alcançada quando se examina a transferência de competência, também para o município de destino (antes vetada pela Presidência da República), na hipótese em que a legislação do município de origem não observa a alíquota mínima de 2% do ISS, ou cria incentivos ou benefícios fiscais do qual resulte, direta ou indiretamente, carga tributária menor do que a decorrente da aplicação daquela alíquota.
Não se nega que essa regra tem o justo propósito de buscar inibir a guerra fiscal entre municípios, que é um dos problemas centrais a serem enfrentados por quem quer que se proponha a fazer uma reforma tributária neste país.
Mas, como já tive oportunidade de dizer nesta coluna, não se pode pretender extinguir a guerra fiscal por meio de qualquer iniciativa que termine por prejudicar aquele que por ela não é responsável; no caso, o contribuinte e, até mesmo, o tomador ou intermediário dos serviços, a quem os dispositivos antes vetados atribuem responsabilidade pelo recolhimento do tributo naquelas circunstâncias.
Como se já não bastassem as regras do Cepom (Cadastro de Empresas Prestadoras de Outros Municípios), que atribuem responsabilidade ao tomador nas aquisições intermunicipais de serviços prestados por empresa não cadastrada no município de destino, agora, mesmo que cadastrado o prestador, o tomador, que poderá ser qualquer um de nós, terá que também verificar se o fornecedor do serviço não se valeu de algum benefício do qual decorra, no município de origem, imposição tributária inferior àquela mínima estabelecida pela LC (2% do valor da prestação do serviço).
É um custo de conformidade de tamanha onerosidade, que não justifica a adoção da regra, como declarado nas razões do veto (derrubado) do dispositivo que a criou.
Isso para não falar em incertezas não esclarecidas pela redação adotada, como, por exemplo, o que se fará na hipótese em que, também no município de destino, o ISS incida no mesmo serviço a uma alíquota inferior a 2%.
Como bem lembrado pelo meu querido e ilustre guru, Condorcet Rezende, em seu livro Caminhadas no Direito, “os ‘custos de conformidade’ não podem deixar de ser levados em consideração pelo peso que representam para as empresas. Tanto assim, que a International Fiscal Association – IFA, sediada na Holanda, e que é assessora tributária da ONU, escolheu para um dos temas do Congresso que realizou no Rio de Janeiro em setembro de 1989, exatamente, os ‘compliance costs’ (o Congresso foi organizado e presidido pelo inesquecível mestre Gilberto de Ulhôa Canto). O tema teve por relator o professor inglês Cedric Sandford, o qual avaliou o custo para o contribuinte das mudanças na legislação tributária, que o obrigam a constantes atualizações. Esses custos, como mostrou o professor Sandford, não são apenas financeiros, com a contratação de assessores econômicos, jurídicos e contábeis, mas até mesmo psicológicos, pois as repetidas mudanças na legislação deixam o contribuinte inseguro quanto às consequências fiscais de seus atos”
Quase 30 anos após, estamos prestes a realizar o segundo Congresso da IFA no Brasil (no Rio de Janeiro, entre 27/8 e 1º/9) e ainda nos vemos envolvidos com problemas idênticos aos que vivíamos há três décadas!
[1] OLIVEIRA, Ailton Soares de. Com derrubada de vetos, novo ISS beira a insanidade tributária. Consultor Jurídico. Publicado em 02.06.2017; MACEDO, Alberto. Vetos na LC 157/2016 evitam explosão de custos de conformidade. Consultor Jurídico. Publicado em 14.03.2017; BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. ISS: consequências da rejeição do veto presidencial no Projeto de lei Complementar 366/13. Migalhas. Publicado em 12.06.2017, entre outros.
[2] A título demonstrativo, cito os seguintes julgados: REsp 1.374.636, 2ª Turma, rel. min. Humberto Martins, DJe 18/12/2015; REsp 1.320.737, 1ª Turma, rel. min. Ari Pargendler, DJe 29/10/2013; REsp 1.116.792, 1ª Seção, rel. min. Luiz Fux, DJe 14/12/2010; e REsp 728.999, 1ª Turma, rel. min. Luiz Fux, DJ 26/10/2006.
Autor: Gustavo Brigagão.