Com a decretação do estado pandêmico pela Organização Mundial de Saúde e do estado de emergência sanitário pelo governo federal no mês de março do ano em curso, fomos apresentados a concretização de uma tragédia numa perspectiva global até então inédita para muitos de nossa geração.
Abruptamente, submergimos num cenário de incertezas, informações múltiplas e desencontradas, algumas até mesmo falsas. Passamos a ser testemunhas oculares e partícipes da história e do Direito.
Delimitando a presente abordagem a aspectos eminentemente jurídicos , é preciso ter como premissa inicial que o período pandêmico e as relações jurídicas ocorridas /advindas dele, perdurarão no nosso cotidiano por um longo período, ainda que a emergência sanitária em si fique exaurida, o que ao que tudo indica, só virá de fato ocorrer com o surgimento da esperada vacina.
No contexto técnico jurídico propriamente dito e, tendo como parâmetro apenas a legislação federal, tivemos nesse curto período de tempo a edição de mais de 200 atos normativos[1]. Somemos ainda, os atos normativos dos 26 Estados Membros, do Distrito Federal e ainda dos 5571 municípios. Não satisfeitos, adicionemos a essa “biblioteca jurídica”, as centenas de decisões judiciais e recomendações do Ministério Público, Defensoria Pública e da Advocacia Pública das três esferas federativas e teremos a concretização de uma verdadeira pandemia legislativa/normativa.
Não obstante, se é certo que administrar é aplicar a Lei de oficio, na clássica lição do grande Seabra Fagundes, e que o princípio da legalidade na Administração Pública pressupõe um autorizativo legal específico para nortear a atuação do administrador, também é certo que mesmo em tempos de pandemia legislativa/normativa, a dinâmica social é perene e vigorosa, nos surpreendendo a cada dia, sendo impossível a lei prever in abstrato, e consequentemente dar o autorizativo legal ao administrador, para todas as situações do cotidiano.
Neste contexto, escancaram-se os espaços para a atuação normativa e discricionária da Administração, há situações urgentes em que o gestor não pode simplesmente ficar preso às amarras da lei em sentido formal, devendo ser guiado pelo Ordenamento Jurídico como um todo, notadamente à Constituição Federal.
Emerge assim, de forma vigorosa a figura do Procurador Municipal e sua atuação no assessoramento do Poder Executivo, tanto no prisma do controle interno de legalidade dos atos da gestão, bem como na colaboração para viabilizar no plano fático as políticas públicas escolhidas pelos munícipes em decorrência do princípio democrático.
Acrescente-se ao cenário, o protagonismo assumido pelos municípios no enfrentamento da pandemia[2]. O Supremo Tribunal Federal em diversos julgamentos, a exemplo da ADI 6341/DF[3], tem conferido tal status, fixando o entendimento que os Municípios , ao lado dos Estados, tem autonomia para o enfrentamento da crise sanitária nos limites de sua competência administrativa, visto tratar-se de competência comum nos moldes previsto no art.23, II, CRFB/88.
Em termos de controle interno de legalidade propriamente dito, a dinâmica dos acontecimentos tem nos confrontado diretamente, evidenciando a necessidade de avançar. Não podemos simplesmente extinguir procedimentos com base em indeferimentos diretos e supor que estamos desempenhando legitimamente o nosso papel. É preciso apontar caminhos, propor soluções, cumprir o nosso mister enquanto parceiros da gestão.
No campo do assessoramento para implementação de políticas públicas, também não podemos ficar inertes, notadamente em tempos pandêmicos, perante situações emergenciais sob a justificativa de simples ausência de lei permissiva. Exemplifique-se os casos de auxílios, ajudas de custo aos vulneráveis sociais, realocação de pessoas e limitações de atividades. Nestes casos, por vezes, esperar a edição de lei ou mesmo de um suprimento judicial é literalmente abdicar da legitimidade conferida pelo beneplácito das urnas e entregar os munícipes à própria sorte.
Fica bastante evidente que, conferir ao Administrador Público, maior liberdade para agir, em especial, num contexto como o vivenciado nos dias atuais, não implica em ausência de controle. Nesse sentido, conforme demonstrado, sobreleva a importância e a premente necessidade de uma Advocacia Pública Municipal forte, efetiva, provida por meio de Concurso Público, que representará a concretização de valores de uma Advocacia de Estado e não de Governo pura e simples.
Por fim, e não menos importante, em momento oportuno, submeter-se-á o Administrador aos demais órgãos e instituições de controle, que avaliarão, no caso concreto, se a sua atuação do gestor se deu a bem do interesse público e se foi guiada pelos princípios norteadores da Administração Pública e demais preceitos da probidade administrativa.
É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do estado democrático de direito e este é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã.
[1] http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/quadro_portaria.htm
[2] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441075
[3] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447
Autor: Alessandro Farias Leite é procurador do município de Campina Grande (PB) e diretor da ANPM.
Fonte: Conjur.