O pensamento tradicional do direito administrativo, não raro, ainda rejeita a prática de atos de natureza consensual por parte do Estado, sob a vetusta premissa de que o interesse público seria invariavelmente indisponível. Segundo essa corrente, que, mesmo enfraquecida, continua a atrair adeptos, interesses públicos não se sujeitariam à livre disposição do administrador público.
Ao lado dessa noção de indisponibilidade, defende-se também a supremacia apriorística do interesse público sobre os interesses particulares. Para quem segue esse entendimento, prevalece a ideia de que, no domínio público, existe sempre uma relação vertical que reflete a autoridade do Estado e à qual o particular está sujeito. Seria inconcebível, pois, que o administrador transacionasse com agentes privados, desnaturando a pureza do interesse público.
No entanto, as noções de superioridade e de indisponibilidade do interesse público – típicas de um regime jurídico autoritário – já não se sustentam nem se legitimam à luz do sistema de direitos e garantias fundamentais instituído pela Constituição de 1988 e da estrutura pluralista e maleável dos princípios que regem a atividade administrativa. A lógica de consensualidade se insere justamente nesse contexto de evolução. Com efeito, a Administração Pública, outrora voltada a uma atuação unilateral, tem se deparado com uma realidade em que a lógica da autoridade em muitos casos já não mais condiz com os princípios fundamentais que regem a atividade administrativa, como o da eficiência (art. 37, caput, CRFB/88).
A atuação consensual não representa nem inerente, nem necessariamente a subversão do interesse público. Muito ao contrário: a consensualidade pode ser – e muitas vezes é – o meio mais adequado para atingi-lo. Afinal, não existe uma noção estática de interesse público. O que há, em cada caso, é um plexo de interesses legítimos, públicos e privados, que devem ser devidamente acomodados diante das circunstâncias concretas.
Assim, a atividade consensual da Administração não só é conveniente como também é, por vezes, necessária e indispensável para alcançar esse resultado ótimo. Prova disso é que doutrina, legislação e jurisprudência têm evoluído no sentido de reconhecer a juridicidade da adoção de mecanismos consensuais pela Administração Pública.
Nesse contexto, questão delicada que se coloca está em saber se o racional de consensualidade também se aplica quando se discutem possíveis atos de improbidade administrativa. E isso porque o §1º do art. 17 da Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA) veda qualquer “transação, acordo ou conciliação nas ações” propostas com objetivo de punir agentes públicos e/ou privados que tenham praticado atos de improbidade administrativa.
Há autores que, apegados à noção de indisponibilidade do interesse público, negam categoricamente a possibilidade de qualquer solução consensual em ações de improbidade. Outros, diante da literalidade do dispositivo legal, adotam posição intermediária, no sentido de que a LIA só vedaria a celebração de acordos no curso das ações, mas não na fase pré-processual. E há ainda os que admitem apenas a celebração de acordos para regular as condições quanto ao prazo e ao modo de reparação do dano ao erário, sem concessões recíprocas de parte a parte.
A despeito da letra da lei e da posição adotada por parte da literatura nacional, não há razões para se impedir a adoção de soluções consensuais também em ações de improbidade.
De início, sustentar que §1º do art. 17 da LIA vede a celebração de acordos judiciais, mas não na fase pré-processual, carece de amparo lógico-jurídico. Com efeito, a fase processual é aquela que naturalmente está cercada de maiores cuidados, na medida em que eventual acordo em ação dessa natureza será submetido a escrutínio judicial e poderá, eventualmente, ser impugnado por terceiros que com ele não concordem. De mais a mais, o fato de o Ministério Público deflagrar ação judicial não aumenta ou diminui a culpabilidade dos agentes investigados, cuja definição dependerá de uma decisão judicial.
A imprevisibilidade inerente às ações judiciais também é um importante elemento que pode justificar a celebração de um acordo. A adoção de mecanismos consensuais, em qualquer estágio, pode incrementar o grau de eficiência de ajustes de adesão voluntária, reduzir o tempo de tramitação dos feitos, os custos para as partes e o nível de litigiosidade administrativa e judicial. A atuação consensual, diferentemente daquela baseada em uma lógica impositiva, tem maiores chances de ser efetivada na prática, gerando menos riscos de externalidades negativas.
Não faz sentido, por exemplo, que o Poder Público seja obrigado a mover uma demanda judicial incerta e que poderá se arrastar por anos (com possibilidades reduzidas de recuperação de recursos apropriados indevidamente), ao invés de firmar um acordo com um particular que esteja de boa-fé e que se proponha a ressarcir eventuais prejuízos que tiverem sido causados ao erário. Elementos como complexidade da controvérsia em curso, fator temporal e insegurança associada à eventual propositura de demanda judicial por qualquer das partes podem justificar a adoção de mecanismos consensuais.
Sob outro enfoque, pode-se afirmar que o §1º do art. 17 da LIA foi derrogado tacitamente por um conjunto de normas posteriores a ele, a saber: (i) o art. 36, §4º da Lei nº 13.140/2015, que passou a admitir a autocomposição extrajudicial em questões submetidas a ações de improbidade; (ii) os arts. 16 e 17 da Lei nº 12.846/2013 (Lei anticorrupção – LAC), que autorizam a celebração de acordo de leniência; (iii) o art. 174 do CPC/2015, que prevê a possibilidade de adoção de mediação para resolução de conflitos que envolvam a Administração; e, ainda, (iv) o art. 26 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterada pela Lei nº 13.655/2018), que prevê que a autoridade administrativa, para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, poderá “celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável (…)”.
Esses dispositivos indicam, de forma veemente, a superação da vedação contida na Lei de Improbidade Administrativa. Algo, pode-se dizer, consolidado pela Lei Anticorrupção, que autoriza a celebração de acordos de leniência de forma mais ampla e alcança exatamente os mesmos bens jurídicos albergados pela lei de improbidade (i.e., patrimônio público e moralidade administrativa). Haveria uma incongruência sistêmica insustentável em se autorizar o acordo em um caso e vedá-lo no outro.
Note-se que o próprio Ministério Público Federal, por intermédio da Nota Técnica nº 1/2017 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção, reconheceu que “deve-se observar, por analogia, na improbidade administrativa, todo o previsto no art. 16, §1º, II e III, da LAC, por ser fácil e plenamente transponível de uma matéria a outra, devido à semelhança dos atos lesivos tratados e do modelo normativo utilizado”. De fato, “por incompatibilidade com o microssistema, o advento da LAC promoveu a derrogação, ainda que tácita, da antiga vedação ao acordo de leniência na LIA.” Nessa mesma linha, o Conselho Nacional do Ministério Público, por intermédio da Resolução nº 179/2017 (que regulamenta a celebração do TAC previsto no §6º do art. 5º da Lei nº 7.347/1985), estabeleceu de forma expressa a possibilidade de celebração do referido instrumento nos casos em que se imputam a agentes públicos ou particulares a prática de atos de improbidade administrativa.
Em suma, há um conjunto relevante de fatores que demonstra a superação da vedação contida no art. §1º do art. 17 da Lei nº 8.429/1992, o que, de forma geral, vai ao encontro da lógica de consensualidade administrativa. Não faz sentido proibir-se de forma apriorística a celebração de qualquer ajuste consensual, ainda que a matéria possa configurar, em tese, ato de improbidade administrativa. Ainda mais diante do advento de normas que caminham em sentido diametralmente oposto ao da LIA.
Por imperativo de segurança jurídica, entretanto, é recomendável que o dispositivo seja expurgado do ordenamento jurídico. Até porque, o fato de a norma ainda estar formalmente em vigor pode dificultar que órgãos de controle validem transações firmadas entre Ministério Público e particulares, impossibilitando a resolução de conflitos de forma eficiente e impondo às partes um severo ônus de insistir em um litígio incerto e custoso.
É verdade que já existe um projeto de lei que busca justamente revogar a redação atual do art. 17, §1º da LPA[1], mas é recomendável que a Procuradoria-Geral da República também se posicione firmemente quanto à antijuridicidade do dispositivo, seja por meio da propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade com esse objeto perante o Supremo Tribunal Federal, seja por intermédio da apresentação de manifestação nesse sentido em demandas já deflagradas por outros legitimados[2].
Por fim, vale registrar que a possibilidade de se firmar um acordo, por óbvio, não é um cheque em branco. Em qualquer hipótese, o Poder Público deve verificar os riscos, custos e efeitos concretos, diretos e colaterais, relacionados à celebração do acordo na situação específica e optar, de forma motivada, por transacionar se e quando essa escolha se apresentar como a melhor alternativa. Vale lembrar que a consensualidade, de fato, embora se revele muitas vezes aconselhável, demanda do agente público um ônus argumentativo não raro mais elevado e sofisticado. Seja como for, a maior dificuldade na motivação não pode servir de barreira intransponível a avanços voltados a tornar a Administração Pública verdadeiramente mais democrática e eficiente.
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[1] Trata-se do Projeto de Lei nº 10.887/2018, em trâmite na Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0CC172B248890481E5CF4DDCC518ABF8.proposicoesWebExterno2?codteor=1687121&filename=PL+10887/2018; Acesso em: 28/10/2019.
[2] A propósito, já se encontra em curso no STF a ADI nº 5980, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro, de relatoria do Ministro Celso de Mello.
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Fonte: Blog do Jota.