Se as criptomoedas já se consolidaram como ativo financeiro alternativo e instrumento de especulação (trades), utilizá-las no mundo real é um desafio que ainda possui grandes barreiras. A falta de estabelecimentos preparados, a falta de interesse e incentivo para muitos comerciantes e até a cultura “hodler” contribuem para a baixa disseminação do Bitcoin e outros criptoativos como alternativa à moeda corrente.
Foi pensando nisso que o Área Bitcoin, de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, resolveu trilhar um desafio bastante considerável: as suas fundadoras decidiram passar quatro dias inteiros em Florianópolis, Santa Catarina, sobrevivendo apenas com Bitcoin. De gasolina até os chopes, tudo pago com a criptomoeda.
O projeto do canal nasceu no início de 2019 e é liderado por duas mulheres, Carol Souza e Kaká Furlan, que são empreendedoras e entusiastas do universo das criptomoedas e da blockchain. Intitulado LiveOnCrypto, o projeto mostra a rotina de Souza e Furlan na ilha, conversando com estabelecimentos que aceitam criptomoedas e também com empreendedores do ecossistema local. O projeto fez a dupla ser escolhida para participar da edição da Blockchain Week em São Francisco, Califórnia, um dos principais polos de criptomoedas do mundo.
E para falar sobre a repercussão e os principais destaques da série e da Blockchain Week, Souza e Furlan concederam uma entrevista exclusiva ao CriptoFácil. Confira!
CriptoFácil: Olá, meninas. Para começar, como surgiu a ideia de criar o Área Bitcoin?
Carol Souza: Criamos o Área Bitcoin a partir da observação dos canais de criação de conteúdo que existiam nos primeiros meses de 2019. Todos estavam muito voltados para trade, haviam poucas referências femininas e ninguém ia a campo mostrar como funcionam as rotinas das cidades e como, na prática, estava o uso das criptomoedas. A partir daí pensamos que poderíamos criar um canal que preenchesse essas lacunas. Já vínhamos estudando sobre ações, títulos públicos, LCI, LCA, etc, sobre educação financeira como um todo e percebemos que o conhecimento sobre criptomoedas é complementar e indispensável para quem quer ter o controle sobre suas finanças e vida financeira.
As criptomoedas vieram como um chamado para tentar despertar nas pessoas para o papel das criptos na educação financeira e para tentar estimular o uso delas como uma ferramenta que leva à liberdade financeira (no sentido de não depender de governos ou intermediários).
Kaká Furlan: Começamos a estudar criptos no final de 2018 e não paramos mais. Esse assunto é apaixonante! Depois que você começa a entender o real propósito da existência do Bitcoin e o as mudanças que essa tecnologia pode trazer para a sociedade, é difícil você voltar a pensar como antes, seu cérebro se expande para um novo nível de entendimento de como funciona a economia, de como funcionam as relações institucionais e de como nós (sociedade) estamos entranhados nesse emaranhado burocrático e nesse sistema ineficiente. Se existe uma solução para vivermos uma vida melhor, acredito que devemos optar por ela.
CF: E como surgiu a ideia de fazer o LiveOnCrypto?
CS: O LiveOnCrypto surgiu como uma ramificação do Área Bitcoin. Pensamos que para as criptomoedas serem cada vez mais utilizadas precisamos mostrar como isso está acontecendo e dar o exemplo, mostrar como as cidades estão evoluindo nesse sentido e sair um pouco das gravações internas e botar as criptomoedas na rua! É um call to action para que as pessoas e para os entusiastas, que ficam guardando suas moedas, façam a mesma coisa e passem a consumir pagando em criptomoedas. Amamos viajar e pensamos em unir o propósito de estimular a adoção das criptos à ideia de conhecer o mundo!
KF: O LiveOnCrypto hoje é o nosso principal projeto dentro do Area Bitcoin. Percebemos que criar conteúdo base sobre criptomoedas com o objetivo de educar as pessoas é muito importante, porém iríamos atingir somente aquelas pessoas que estavam buscando por esse assunto nas redes. Precisávamos ir pra rua, falar sobre cripto, ver como a comunidade cripto está se organizando em diferentes cidades do mundo, como está a usabilidade, as novas startups, as perspectivas diferentes, usar as criptos no dia a dia e dessa forma chamar a atenção das pessoas não só no online, mas também na “vida real”. De nada adianta termos a tecnologia se não utilizarmos. Acreditamos que a partir de vídeos voltados para o entretenimento, de forma divertida e com uma linguagem simples, conseguimos despertar a curiosidade, criar conexão e se torna mais interessante aprender sobre esse assunto.
CF: O que levou vocês a escolherem Florianópolis como ponto de partida?
CS: É uma cidade bem próxima de Porto Alegre, seria mais fácil para a gente se deslocar, e descobrimos que por lá tem um shopping onde todas as lojas aceitam criptomoedas. Isso nos chamou bastante a atenção e resolvemos ir lá conferir e pesquisar como isso foi possível.
CF: Ao todo, quanto tempo vocês passaram vivendo apenas de criptomoedas e gravando a série?
CS: No episódio de Florianópolis foram quatro dias. Agora nesse de São Francisco (Blockchain Week) foram 10 dias.
CF: Quais foram os principais desafios que vocês encararam ao tentar viver só com criptomoedas?
CS: Poucos lugares aceitando, a gente fica com poucas opções de consumo. Muitas vezes até no próprio estabelecimento que aceita cripto os funcionários não estão acostumados a fazer a transação então fica um pouco truncado. Além disso, próprios entusiastas acham difícil e acham que não é possível. Outra dificuldade é todo o planejamento e mapeamento dos lugares que aceitam cripto e mesmo assim é preciso confirmar no local. É muito frequente a gente olhar na internet que tal lugar aceita criptomoedas e chegando lá por diversos motivos o estabelecimento não aceita mais. Então além de mapear entramos em contato com todos os lugares para ver se quais são realmente cripto-friendly.
CF: Vocês chegaram a utilizar ou ver estabelecimentos que aceitavam outras criptomoedas além do Bitcoin?
CS: Sim, no Hostel Casa Terra, onde ficamos hospedadas, o dono (Diego) aceita Ethereum (ETH), Nano, Iota…. Na verdade ele aceita quase todas as criptomoedas listadas na Binance, ele é super entusiasta. Mas o restante só aceitava Bitcoin.
KF: Geralmente os lugares aceitam Bitcoin, Ethereum (ETH), Litecoin e Dash. Na Califórnia achamos um lugar que aceita várias criptomoedas, mas as principais são essas quatro que citei. A gente percebe que as moedas mais aceitas nos estabelecimentos são aquelas que fazem um trabalho mais forte voltado para usabilidade no dia a dia. A Dash, por exemplo, está muito voltada para isso e você encontra mais facilmente lugares que aceitam essa moeda.
CF: Durante a experiência de vocês, quais foram os principais motivos que as pessoas alegavam para receber criptomoedas em seus estabelecimentos?
CS: A maioria dos estabelecimentos que aceita de forma direta é porque os donos já entraram pelo “buraco do coelho” e acredita nos fundamentos das criptomoedas (liberdade, privacidade, transparência, etc). Em lugares que utilizam intermediários para o recebimento, geralmente o primeiro contato acontece através de startups e fintechs. Elas estão trazendo o comerciante para o mundo cripto, aí os argumentos são de diferenciação no mercado, taxas menores e oferecer mais possibilidades de pagamentos aos consumidores.
KF: (Essas empresas) estão tentando ampliar o leque de possibilidade para vender para um público diferente, os entusiastas, a galera ligada em tecnologia, os early adopters. Mas se esse público não usa criptos nesses estabelecimentos para pagar coisas no dia a dia, esses comerciantes se desestimulam e acabam desistindo de aceitar. É isso que temos visto por onde passamos. A própria comunidade não estimula e os lugares desistem de aceitar, pois não há procura.
CF: Após a experiência, vocês acreditam que as pessoas já estão aceitando melhor a ideia de pagamentos com criptomoedas? O que vocês acham que falta para que elas sejam mais disseminadas?
CS: Acreditamos que estamos plantando uma sementinha, muitas vezes só o fato de perguntar se o estabelecimento aceita criptomoedas já gera um questionamento e faz com que minimamente a pessoa reflita sobre aquela situação. Falta mais estímulo e exemplos de uso, as pessoas precisam parar de guardar suas criptomoedas e colocá-las nas ruas, receber e pagar com elas. Aí sim a criptoeconomia vai florescer.
KF: Com certeza falta educação. Esse é o ponto chave. E estímulo também. Como comentei antes, se o comerciante que passa a aceitar não tiver procura, ele desiste da ideia. A comunidade precisa começar a usar. Fazer hodl é válido sim, pois Bitcoin também é reserva de valor, mas existem dois caminhos diferentes e os dois podem estar em ação, o de guardar e o de usar. Tem outra questão que é o da volatilidade e das taxas. A tendência é que quanto mais as pessoas usem, menos volátil se torne e o mercado amadureça. Nesse momento a volatilidade faz parte, mas conforme a adoção for aumentando, acreditamos que se estabilize. Quanto mais adoção, mais liquidez e mais estabilidade.
CF: Hoje, muitas pessoas utilizam o Bitcoin mais como forma de especulação ou reserva de valor, relutando muito para gastá-lo. O que vocês pensam sobre esse comportamento e como isso pode impactar no sucesso do Bitcoin como meio de troca?
CS: Nossa, isso é muito comum. Acreditamos que cada projeto cripto tem uma proposta específica. Tudo bem você não querer gastar seus BTC e guardar como reserva de valor para o futuro e esperar valorização. Ok, concordamos com esse ponto de vista. Mas existem outras criptomoedas que você pode utilizar sem mexer nos seus bitcoins. Se você é entusiasta e acredita no poder das criptomoedas, é o uso que vai trazer liquidez para o mercado e inclusive fazer o Bitcoin se valorizar. Se realmente acontecer opadrão Bitcoin, todas as outras criptomoedas o terão como referência. Então escolha uma da sua preferência e troque uma parcela do seu dinheiro por ela e procure lugares na sua cidade que aceitem, ou lojas pela internet, e faça essa pressão nos comércios também. Pergunte se eles aceitam DASH, DODGE, ETH, qualquer uma. Peça para o seu chefe te pagar em criptomoedas, venda produtos em cripto. Assim você estimula todo o ecossistema e não fica esperando por cavaleiros do apocalipse ou catástrofes econômicas.
CF: Entre os comerciantes que vocês entrevistaram e viram, quantos recebem em cripto e guardaram e quantos converteram imediatamente para Reais?
CS: A maioria converte para reais. Só um guardava.
CF: Em relação à série, quando teremos novos episódios disponíveis?
CS: Até o meio de dezembro o episódio de São Francisco deve estar no ar. Editar e produzir o episódio é o que consome mais tempo e trabalho.
KF: Hoje fazemos tudo sozinhas, sem patrocínio, então tocamos nossos trabalhos em paralelo com o projeto Área Bitcoin , por isso leva mais tempo para conseguirmos colocar os conteúdos no ar. Mas estamos ansiosas para lançar o episódio de São Francisco e vamos fazer o possível para lançar o quanto antes nas nossas plataformas.
CF: Vocês pretendem levar o LiveOnCrypto para outras cidades?
CS: Sim, para o mundo inteiro se possível! Nosso próximos destinos são: Argentina, São Paulo, Praga e Brisbane.
KF: Mapeamos as principais cidades que aceitam cripto e onde a comunidade está mais ativa. Nossa ideia é visitar essas cidades e fazer episódios em cada uma delas. Tem muita coisa legal acontecendo pelo mundo, mas as informações estão pulverizadas. Estamos terminando de montar o projeto e vamos em busca de empresas que queiram abraçar essa causa e essa ideia com a gente.
CF: Vamos falar sobre a Blockchain Week em São Francisco (EUA). Quais as principais diferenças de percepção, brasileiros e norte-americanos, em relação às criptomoedas que vocês puderam notar comparando as duas experiências?
CS: O brasileiro está utilizando criptomoedas muito mais do que os americanos; nos EUA eles não abrem a wallet de jeito nenhum! Acreditam que é reserva de valor para o longo prazo e ponto final. Apenas as empresas estão começando a falar em usabilidade, falando com os desenvolvedores e entusiastas isso é impensável. Estão num HODL eterno. Achamos curioso pois aqui no Brasil, nas conferências, tentamos unir toda uma experiência. Assistimos a palestras, fazemos networking e ainda podemos pagar um lanche em criptomoedas ou recebe um airdrop para poder ter a experiência. Por lá nada! Não tem nada dentro do evento que você possa consumir usando criptomoedas. Achamos muito curioso.
KF: Outro ponto interessante é que em São Francisco não se fala em pirâmide. Já aqui no Brasil é só o que se fala nos grupos. Sabemos que aqui pirâmides são mais frequentes, mas achamos que abordar de forma excessiva esse assunto é dar ainda mais visibilidade para um comportamento criminoso. A pessoas caem nesses golpes por falta de educação financeira, crença de dinheiro fácil e desconhecimento ou ingenuidade mesmo. Achamos que abordar demais o assunto pirâmides assusta e cria uma atmosfera de que as criptomoedas não são confiáveis; devemos abordar mais os pontos positivos, dar o exemplo positivo e educar.
CF: Sabemos que, infelizmente, ainda existe pouca participação feminina – e até um certo machismo – no mercado de criptomoedas. Nesse sentido, como vocês sentiram a recepção do LiveOnCrypto pela comunidade de criptomoedas em Florianópolis?
CS: Sempre fomos muito bem acolhidas pela comunidade cripto e nos eventos. Em Floripa foi incrível, o pessoal lá é demais. Sentimos uma certa descrença no início mas como todo projeto que está iniciando, no começo você tem que se provar a mostrar a que veio. Estamos muito felizes com a evolução dos nossos projetos, com o engajamento que está rolando, com a crescente presença feminina nesse mercado e queremos evoluir cada vez mais.
KF: A galera em Floripa é sensacional. Fomos muito bem recebidas por todos! Em São Francisco a participação feminina nos chamou atenção, tinha muito mais mulheres no evento e como palestrantes do que aqui no Brasil. O assunto finanças sempre foi um tema mais abordado por homens, mas temos visto que aqui no nosso país isso está mudando (finalmente!). Temos exemplos como Nathália Arcuri (canal Me Poupe!), Carol Sandler, Women in Blockchain, o movimento Financial Feminism e vários outros projetos liderados por mulheres que são voltados para educação financeira e de blockchain. É importante esse espaço ser ocupado não só por mulheres, mas por todos aqueles que sentem afinidade e interesse pelo assunto. Diversidade é fundamental.
Fonte: https://www.areabitcoin.com.br/