A vida era tranquila nas operadoras de cartão de crédito. No campo da labuta, os galos cantavam, as vacas eram ordenhadas e os cafezais, em filas melancólicas, ofereciam seus frutos fartos. As frágeis dificuldades surgidas eram sanadas sem alvoroço. Em relação ao ISS, somente os raros Municípios agraciados com o local da sede das empresas recebiam os seus quinhões, modestos, mas seguros. Modestos em razão de dádivas e incentivos fiscais que reduziam os seus valores; seguros, porque as operadoras faziam questão de pagar pontualmente. Verdade é que havia algo a perturbar a paz reinante: sibilava nos ouvidos dos atentos a dúvida de que os valores pagos à guisa de ISS refletiam, na verdade, a realidade dos fatos, suspeita a incomodar os quadros fiscais desses poucos Municípios. Mas a ordem superior era de que não se intrometessem com perniciosas ações fiscais, que pudessem incomodar os poderosos contribuintes e prejudicar o bom relacionamento existente.
Foi, então, que surgiu uma nova lei complementar, a LC 157, datada de 29 de dezembro de 2016, que, qual uma avalanche a desabar montanha abaixo, veio a transtornar a bucólica calmaria existente nos vales e grotões. Num gesto de desespero, as operadoras ainda tentaram, antes da promulgação, recompor a ordem, orientando seus pares governamentais a vetarem os preceitos que lhes eram nocivos. A ordem foi prontamente obedecida, porém, os vetos foram rechaçados pelo Congresso Nacional, este mais afinado com os interesses municipais.
Com a nova ordem, as operadoras teriam de pagar o imposto nos domicílios dos tomadores dos serviços. Mais precisamente, nos endereços dos estabelecimentos comerciais e de serviços que aceitam pagamentos por meio de cartões de crédito ou débito. E a alíquota não seria mais subsidiada ou favorecida: daria um pulo praticamente de cinco vezes no valor de antanho.
Diante da nova realidade, as operadoras e seus pares (entre eles as instituições financeiras que as controlam) passaram a amedrontar os Municípios com ameaças de recursos e impugnações na Justiça, os quais, no mínimo, protelariam os ansiosos desejos de receitas extras, a essa altura já estimadas em valores assombrosos por pitonisas públicas e privadas, pondo os prefeitos a sonhar de olhos abertos.
Contudo, umas três ADIN foram derrubadas em decisões monocráticas, acendendo o sinal de alerta nas operadoras. Urgia uma solução!
Veio, pois, a brilhante ideia de convencerem a União a aprovar nova lei complementar, não para derrubar a LC 157, agora impossível, mas, pelo menos de traçarem regras mais cômodas para as operadoras, regras que atenuassem as despesas administrativas de apuração do imposto a pagar em todos os Municípios.
Havia uma razão para isso. Imaginem cada Município a exigir o cumprimento de obrigações acessórias esboçadas por conveniência própria e da cabeça de cada um. Haveria a necessidade de montar um monumental aparato administrativo só para cuidar do ISS. Neste aspecto, cabia razão às operadoras, pois vamos supor a seguinte situação, provavelmente bem próxima da realidade:
3.500 Municípios não fariam absolutamente nada, como sempre à espera da mão bondosa vinda de outras bandas;
1.500 Municípios copiariam as regras estabelecidas pelos Municípios maiores, ou Capitais;
570 Municípios estabeleceriam suas regras próprias, impondo obrigações acessórias (ou deveres instrumentais) às operadoras.
Imagine-se a trabalheira das operadoras em seguir as variadas instruções de 2.070 Municípios e sem saber o que fazer com os 3.500 restantes.
E depois de longas conversas com certas autoridades municipais, entre as quais, por certo, nenhum Município pequeno ou de médio porte teve a honra de participar, convenceram um senador a ingressar com projeto de lei complementar, para decisão urgente. Trata-se da PLP 461, já encaminhada à Câmara dos Deputados. Ao final desses comentários transcrevemos a referida PLP 461 na íntegra.
E eis algumas das decisões estabelecidas nesse projeto de lei complementar:
A – Institui o Padrão Nacional de Obrigação Acessória do ISS em relação aos serviços descritos nos subitens 4.22 e 4.23 (planos de saúde), 5.09 (planos de saúde veterinários), 10.04 (intermediação de leasing), 15.01 (administração de fundos, consórcio, cartão de crédito, carteira de clientes, cheques pré-datados etc.) e 15.09 (leasing), da lista anexa à LC n. 116/03.
Os Municípios e o Distrito Federal ficam impedidos de instituírem qualquer outra obrigação acessória, que não seja aquela criada pelo Plano Nacional de Obrigação Acessória, para contribuintes não estabelecidos nos seus territórios, inclusive qualquer exigência de inscrição nos seus cadastros ou obtenção de licenças e alvarás.
Em relação à exigência disposta no § 4º do art. 6º da LC n. 116/03 (parágrafo incluído pela LC n. 157/16), de que os terminais eletrônicos ou maquinetas de operações deverão ser registrados na Prefeitura, para controle do Fisco local, a responsabilidade do seu cumprimento caberá aos estabelecimentos detentores da posse de tais equipamentos, não tendo a operadora qualquer vínculo com essa responsabilidade.
B – O Padrão Nacional de Obrigação Acessória será constituído por um sistema eletrônico de padrão unificado, para uso em todo o território nacional.
Esse sistema fará a apuração do ISS devido para todos os Municípios. O § 1º do art. 2º da PLP 461 diz que o sistema será desenvolvido pelo contribuinte, individualmente ou em conjunto com outros contribuintes. Na verdade, o sistema já está em funcionamento, pelo menos ainda em caráter precário. O autor da proeza foi o Serpro, embora se diga que uma empresa privada de tecnologia de informática, contratada pelo órgão federal, tenha sido a autora do referido sistema.
Quem deveria definir o layout e padrões desse sistema seria o novo Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN, tendo até sigla, CGOA, como aduz o art. 9º do referido projeto. O curioso é que o tal Comitê ainda não foi criado, na espera do projeto ser aprovado em lei complementar, mas o comentário geral é de que o sistema já foi implantado.
O sistema ora tratado será franqueado pelo contribuinte aos Municípios, que terão acesso mensal e gratuito, conforme diz o § 2º do art. 2º da PLP. Realmente, um alívio saber que os Municípios nada pagarão para receber as informações exigidas como obrigações acessórias. Mas os Municípios terão acesso somente em relação às informações de suas respectivas competências, sendo, pois, inadmissível fazer comparações com municípios do mesmo porte ou da vizinhança.
C – Fica, então, instituído mais um Comitê Gestor na praça. Trata-se, agora, do Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN – CGOA. A competência do CGOA será a de regular a aplicação do padrão nacional da obrigação acessória de que tratamos acima. Em outras palavras, os Municípios e o Distrito Federal perdem a competência de legislar sobre obrigações acessórias nesses casos. E não se trata de adesão ou convênio do Município ao CGOA: os Municípios e o Distrito Federal são obrigados a aceitar a imposição do tal Comitê Gestor. Sem dúvida, afrontosa violação dos termos da Constituição Federal, particularmente sobre a competência dos entes políticos.
O CGOA será composto por 10 membros, representando as regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil, desta forma:
1 representante de capital ou do Distrito Federal por região, indicados pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP);
1 representante de Município não capital por região, indicados pela Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Bem, aos que estejam dispostos, abaixo a PLP 461 na íntegra:
PLP 461-2017
Ofício nº 1.464 (SF) Brasília, em 18 de dezembro de 2017.
A Sua Excelência o Senhor Deputado Giacobo
Primeiro-Secretário da Câmara dos Deputados
Assunto: Projeto de Lei do Senado à revisão.
Senhor Primeiro-Secretário,
Encaminho a Vossa Excelência, a fim de ser submetido à revisão da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 65 da Constituição Federal, o Projeto de Lei do Senado nº 445, de 2017 – Complementar, de autoria do Senador Cidinho Santos, constante dos autógrafos em anexo, que “Dispõe sobre o padrão nacional de obrigação acessória do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de competência dos Municípios e do Distrito Federal, incidente sobre os serviços descritos nos subitens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003”.
Atenciosamente,
Dispõe sobre o padrão nacional de obrigação acessória do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de competência dos Municípios e do Distrito Federal, incidente sobre os serviços descritos nos subitens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre o padrão nacional de obrigação acessória do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de competência dos Municípios e do Distrito Federal, incidente sobre os serviços descritos nos subitens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
Art. 2º O ISSQN devido em razão dos serviços referidos no art. 1º será apurado pelo contribuinte e declarado por meio de sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional.
§ 1º O sistema eletrônico de padrão unificado de que trata o caput será desenvolvido pelo contribuinte, individualmente ou em conjunto com outros contribuintes sujeitos às disposições desta Lei Complementar, e seguirá leiautes e padrões definidos pelo Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA), nos termos dos arts. 9º a 11 desta Lei Complementar.
§ 2º O contribuinte deverá franquear aos Municípios e ao Distrito Federal acesso mensal e gratuito ao sistema eletrônico de padrão unificado utilizado para cumprimento da obrigação acessória padronizada.
§ 3º Quando o sistema eletrônico de padrão unificado for desenvolvido em conjunto por mais de um contribuinte, cada contribuinte acessará o sistema exclusivamente em relação às suas próprias informações.
§ 4º Os Municípios e o Distrito Federal acessarão o sistema eletrônico de padrão unificado dos contribuintes exclusivamente em relação às informações de suas respectivas competências.
Art. 3º O contribuinte do ISSQN declarará as informações objeto da obrigação acessória de que trata esta Lei Complementar de forma padronizada, exclusivamente por meio do sistema eletrônico de que trata o art. 2º, até o 25º (vigésimo quinto) dia do mês seguinte ao de ocorrência dos fatos geradores.
Parágrafo único. A falta da declaração, na forma do caput, das informações relativas a determinado Município ou ao Distrito Federal sujeitará o contribuinte às disposições da respectiva legislação.
Art. 4º Cabe aos Municípios e ao Distrito Federal fornecer as seguintes informações diretamente no sistema eletrônico do contribuinte, conforme definições do CGOA:
I – alíquotas, conforme o período de vigência, aplicadas para os serviços referidos no art. 1º desta Lei Complementar;
II – arquivos da legislação vigente no Município ou no Distrito Federal que versem sobre os serviços referidos no art. 1º desta Lei Complementar;
III – dados do domicílio bancário para recebimento do ISSQN.
§ 1º Os Municípios e o Distrito Federal terão até o último dia do mês subsequente ao da disponibilização do sistema de cadastro para fornecer as informações de que trata o caput, sem prejuízo do recebimento do imposto devido retroativo a janeiro de 2018.
§ 2º Na hipótese de atualização, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, das informações de que trata o caput, essas somente produzirão efeitos no período de competência mensal seguinte ao de sua inserção no sistema, observado o disposto no art. 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal, no que se refere à base de cálculo e à alíquota, bem como ao previsto no § 1º deste artigo.
§ 3º É de responsabilidade dos Municípios e do Distrito Federal a higidez dos dados que prestarem no sistema previsto no caput, sendo vedada a imposição de penalidades ao contribuinte em caso de omissão, de inconsistência ou de inexatidão de tais dados.
Art. 5º Ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei Complementar, é vedada aos Municípios e ao Distrito Federal a imposição, a contribuintes não estabelecidos em seu território, de qualquer outra obrigação acessória com relação aos serviços referidos no art. 1º, inclusive a exigência de inscrição nos cadastros municipais e distritais ou de licenças e alvarás de abertura de estabelecimentos nos respectivos Municípios e no Distrito Federal.
Parágrafo único. O registro de que trata o § 4º do art. 6º da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, será feito no domicilio dos detentores da posse dos equipamentos, não cabendo a imputação de responsabilidade ao prestador de serviços.
Art. 6º A emissão, pelo contribuinte, de notas fiscais de serviços referidos no art. 1º pode ser exigida, nos termos da legislação de cada Município e do Distrito Federal, exceto para os serviços descritos nos subitens 15.01 e 15.09, que são dispensados da emissão de notas fiscais.
Art. 7º O ISSQN de que trata esta Lei Complementar será pago até o décimo quinto dia do mês subsequente ao de ocorrência dos fatos geradores, exclusivamente por meio de transferência bancária, no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), ao domicílio bancário informado pelos Municípios e pelo Distrito Federal, nos termos do inciso III do art. 4º.
§ 1º Quando não houver expediente bancário no décimo quinto dia do mês subsequente ao de ocorrência dos fatos geradores, o vencimento do ISSQN será antecipado para o primeiro dia anterior com expediente bancário.
§ 2º O comprovante da transferência bancária emitido segundo as regras do SPB é documento hábil para comprovar o pagamento do ISSQN.
Art. 8º É vedada a atribuição, a terceira pessoa, de responsabilidade pelo crédito tributário relativa aos serviços referidos no art. 1º desta Lei Complementar, permanecendo a responsabilidade exclusiva do contribuinte.
Art. 9º É instituído o Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA).
Art. 10. Compete ao CGOA regular a aplicação do padrão nacional da obrigação acessória dos serviços referidos no art. 1º.
§ 1º O leiaute, o acesso e a forma de fornecimento das informações serão definidos pelo CGOA e somente poderão ser alterados após decorrido o prazo de 3 (três) anos, contado da definição inicial ou da última alteração.
§ 2º A alteração do leiaute ou da forma de fornecimento das informações será comunicada pelo CGOA com o prazo de pelo menos 1 (um) ano antes de sua entrada em vigor.
Art. 11. O CGOA será composto por 10 (dez) membros, representando as regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil, da seguinte forma:
I – 1 (um) representante de Município capital ou do Distrito Federal por região;
II – 1 (um) representante de Município não capital por região.
§ 1º Para cada representante titular será indicado um suplente, observado o critério regional adotado nos incisos I e II do caput.
§ 2º Os representantes dos Municípios previstos no inciso I do caput serão indicados pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), e os representantes previstos no inciso II do caput, pela Confederação Nacional de Municípios (CNM).
§ 3º O CGOA elaborará seu regimento interno mediante resolução.
Art. 12. É instituído o Grupo Técnico do Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (GTCGOA), que auxiliará o CGOA e terá a participação de representantes dos contribuintes dos serviços referidos no art. 1º desta Lei Complementar.
§ 1º O GTCGOA será composto por 4 (quatro) membros:
I – 2 (dois) membros indicados pelas entidades municipalistas que compõem o CGOA;
II – 2 (dois) membros indicados pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), representando os contribuintes.
§ 2º O GTCGOA terá suas atribuições definidas pelo CGOA mediante resolução.
Art. 13. Em relação às competências de janeiro, fevereiro e março de 2018, é assegurada ao contribuinte a possibilidade de recolher o ISSQN e de declarar as informações objeto da obrigação acessória de que trata o art. 2º desta Lei Complementar até o décimo quinto dia do mês de maio de 2018, sem a imposição de nenhuma penalidade.
Parágrafo único. O ISSQN de que trata o caput será atualizado pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos federais, a partir do primeiro dia do mês subsequente ao mês de seu vencimento normal até o mês anterior ao do pagamento e de 1% (um por cento) no mês de pagamento.
Art. 14. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação.
Senado Federal, em 18 de dezembro de 2017.
Senador Eunício Oliveira
Presidente do Senado Federal
Autor: Roberto A. Tauil , Grupo Editores Blog.
1 comentário
Mais um golpe contra o fisco municipal, estão dando a chave do galinheiro para as raposas.