A aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) — componente do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) Dual brasileiro — é um marco na busca pela simplificação tributária. Contudo, a mera aprovação legislativa é apenas o ponto de partida para um longo e complexo processo de implementação que expõe as fraturas históricas do federalismo fiscal brasileiro, sendo a desconfiança cultural entre os entes subnacionais o principal obstáculo.
O IBS surge como a unificação do ICMS (estadual) e do ISS (municipal) em um único tributo de competência compartilhada, cobrado no destino e administrado pelo inédito Comitê Gestor do IBS (CGIBS). É neste novo arcabouço, centralizador da administração e da repartição de receitas, que residem os maiores desafios práticos e culturais.
1. A Complexidade Operacional e o Fim da Guerra Fiscal
A principal promessa do IBS é o fim da chamada “guerra fiscal”, o jogo predatório de concessão de incentivos de ICMS/ISS na origem que distorcia a alocação de investimentos. A transição para a tributação no destino (local de consumo) é o mecanismo central para corrigir essa distorção.
No entanto, a implementação dessa mudança não é trivial. O novo sistema exige uma uniformização inédita de regras, bases de cálculo, fato gerador e regimes de tributação em todo o território nacional. Isso implica um gigantesco custo de transição em termos de adaptação de softwares, treinamento de pessoal fiscal e, sobretudo, a criação de um modelo operacional robusto, capaz de rastrear milhões de transações diárias e alocar corretamente a receita para os respectivos estados e municípios de destino. A coexistência do sistema antigo (ICMS/ISS) com o novo (IBS/CBS) até 2033 (período de transição) adiciona uma camada de complexidade burocrática temporária, exigindo extrema coordenação.
Para o setor de serviços, que historicamente gozava de alíquotas mais baixas (2% a 5% no ISS), a unificação das bases e a potencial alíquota padrão do IBS representam um aumento significativo da carga. Essa disparidade setorial exige a implementação cuidadosa de regimes diferenciados, que precisam ser desenhados e geridos de forma uniforme e transparente para não reintroduzir a complexidade que a reforma visa eliminar.
2. A Desconfiança Cultural e o Comitê Gestor (CGIBS)
O cerne da resistência e do desafio cultural reside na criação do Comitê Gestor do IBS (CGIBS), um órgão supranacional com competência compartilhada (Estados, DF e Municípios), responsável pela arrecadação, compensação, distribuição de receitas e julgamento do contencioso administrativo do IBS.
A histórica desconfiança entre os entes federativos é o motor do impasse. Ao longo de décadas, a autonomia do ICMS e do ISS foi o principal pilar de poder e independência fiscal de estados e municípios. A substituição dessas receitas próprias por um sistema de partilha administrado por um órgão centralizado, mesmo que composto por representantes dos próprios entes, gera profundos temores:
- Perda de Autonomia: Há o receio de que a centralização da administração no CGIBS resulte em uma perda efetiva da autonomia fiscal e política dos entes. Eles temem que a política tributária local, que afeta diretamente o cidadão, passe a ser determinada por um colegiado com interesses difusos.
- Incerteza da Repartição: Estados e municípios, acostumados a arrecadar diretamente seus tributos (ICMS e ISS), agora dependerão do CGIBS para receber sua quota-parte do IBS. A alocação da receita, especialmente durante a longa e complexa transição, é vista com ceticismo, gerando insegurança sobre a manutenção do seu equilíbrio orçamentário.
- O Fantasma da União: Apesar de o CGIBS ser composto por subnacionais, a União (governo federal) tem um papel crucial na regulamentação e no novo IVA Dual (CBS). A cultura de intervenção e a força fiscal do governo central criam um clima de apreensão de que o federalismo fiscal possa, na prática, ser desvirtuado para uma maior centralização de poder.
O Comitê Gestor, desenhado para ser o ponto focal do consenso e da uniformidade, corre o risco de se tornar o foco do litígio e da disputa. A eficácia da implementação do IBS dependerá fundamentalmente da capacidade dos representantes estaduais e municipais de superar a rivalidade histórica da guerra fiscal e construir uma cultura de cooperação e confiança mútua no seio do CGIBS.
3. A Longa Transição e o Equilíbrio Federativo
O período de transição estendido (até 2033, com regra de compensação de perdas de arrecadação até 2077) é uma tentativa de mitigar o medo dos entes subnacionais. No entanto, a própria longevidade da transição é um desafio, exigindo um mecanismo de governança e fiscalização altamente estável e transparente, capaz de operar por décadas.
A chave do sucesso do IBS reside na prova de que o novo sistema não apenas simplifica a vida do contribuinte, mas que também preserva e otimiza o equilíbrio federativo. Para que os 80\% de desconfiança histórica sejam substituídos por 80\% de adesão, é vital que o CGIBS e as leis complementares garantam: transparência absoluta na alocação da receita, clareza e estabilidade nas regras e, acima de tudo, o respeito inegociável à autonomia de gestão dos entes federados dentro do novo modelo. O IBS é uma reforma que transcende a técnica; é um teste de maturidade política do pacto federativo brasileiro.

