Poder Judiciário tornou-se um hospital de causas tributárias.

por Grupo Editores Blog.

 

 

Essa curta frase de Luiz Roberto Nascimento Silva citada em epígrafe, que abre e intitula artigo de opinião publicado no jornal O Globo do último dia 20 de novembro[1], bem resume a situação atual do país. O texto começa com metáfora de Miguel Reale, que compara o fórum a um imenso hospital para onde iriam as patologias da sociedade, pois questões que se resolvem saudavelmente, por mútuo acordo, prescindem da intervenção judicial. Com isso, o autor faz severa crítica ao excesso de demandas ao Poder Judiciário, que acabam por inviabilizar uma rápida e eficaz resolução dos conflitos, in verbis:

 

“Uma sociedade mais justa não é apenas aquela que gera crescimento e riqueza, assegura o emprego e distribui a renda, mas também a que permite que a Justiça possa harmonizar seus conflitos num tempo razoável”.

 

As “doenças” tributárias têm infestado os “tribunais-hospitais”. Há conflitos entre Estado e contribuintes a todo tempo. Seja em razão da introdução de novas regras de tributação pelos poderes legislativos ou por atos dos poderes executivos incompatíveis com a moldura constitucional e/ou legal dos tributos ou com princípios e garantias constitucionais; seja em razão da contestação em juízo de atos administrativos de lançamento que promovem cobranças reputadas indevidas pelos particulares.

 

O resultado dessa litigiosidade insana é instabilidade e insegurança. Não há país no mundo com tamanho grau de litigiosidade fiscal como o Brasil. E o grande beneficiário desse extremado conflito é o próprio Estado, como bem anota Nascimento Silva:

 

“No campo tributário, os processos que se arrastam não por anos, mas por décadas. O Estado em seu sentido amplo — União, estados e municípios — recorre até de decisões pacificadas que deveria respeitar. Depois empurra os pagamentos através de precatórios que atravessam gerações de contribuintes. Quando as decisões são contrárias ao Fisco com a modulação de seus efeitos em geral ex nunc (só geram direitos para o futuro), elas acabam só devolvendo o que foi cobrado errado para frente, passando um apagador no passado”.

 

Exemplo paradigmático dessa situação absurda é a discussão a respeito da integração ou não do ICMS na base de cálculo das contribuições sociais PIS e Cofins, já solucionada definitivamente pelo Supremo Tribunal Federal, mas que não se encerra formalmente, deixando os contribuintes a ver navios na recuperação de seus indébitos, além de pairar sempre a dúvida sobre se haverá ou não modulação de efeitos e como tal modulação se dará. E, pelo andar da carruagem, a resposta do STF sobre esse tema tão relevante só virá em 2018.

 

Mas a quem recorrer senão ao Judiciário? Haveria outras instâncias de mediação para prevenir ou solucionar conflitos tributários?

 

Acreditamos que sim. A instância adequada para a prevenção de conflitos é, sem dúvida, o Poder Legislativo, que deveria ter um crivo de constitucionalidade mais apurado e técnico. Teremos até o final do ano a oportunidade de ver se haverá ou não uma discussão com alguma juridicidade no Congresso Nacional a respeito da recente Medida Provisória 806, de 30 de outubro de 2017, que criou um regime de tributação para fundos de investimento fechados. Com efeito, os rendimentos produzidos pelas aplicações feitas por referidos fundos deixam de ser tributados por ocasião da amortização ou resgate das quotas, para se submeterem a regime análogo àquele aplicável aos fundos de investimento abertos, taxados semestralmente (maio e novembro) por um modelo de tributação designado, no jargão de mercado, pela expressão come-cotas. Nesse modelo, a tributação ocorre semestralmente, pela menor alíquota regressiva aplicável a cada tipo de fundo (longo prazo, 15%; curto prazo, 20%), reduzindo-se a quantidade de cotas proporcionalmente ao imposto pago pelo administrador, ou seja, há um resgate forçado para pagamento do imposto. Caso o real e efetivo resgate ocorra em prazo inferior àquele da menor alíquota regressiva, o administrador complementará o imposto devido.

 

Sucede que o novo regime da MP 806/2017, além de ser inadequado a certos fundos fechados, com ativos de graus de liquidez bastante diferenciados dos de renda fixa (por exemplo, um fundo multimercado cotista de um fundo de investimento em participações), está prevendo a aplicação das alíquotas regressivas aos fundos fechados com base no prazo de manutenção do investimento a título definitivo. O mais grave, porém, foi o estabelecimento de uma ficção jurídica de pagamento ou crédito de rendimentos em 31 de maio de 2018, com vistas a tributar pelo Imposto de Renda na fonte o estoque de ganhos acumulados nos períodos passados, independentemente do efetivo resgate (artigo 2º). Trata-se de inadmissível tributação retroativa, violadora dos mais básicos princípios constitucionais (irretroatividade, segurança jurídica, direito adquirido). Ora, não se pode aplicar a rendimentos produzidos no passado um novo fato gerador. O novo modelo de tributação dos fundos fechados só pode valer para rendimentos produzidos no futuro. Acresce que a tributação terá por base o valor patrimonial da quota naquela data (31/5/2018), valor esse que poderá flutuar para baixo posteriormente, com o que se terá tributado um acréscimo patrimonial inexistente, sem possibilidade de compensação do imposto pago em excesso.

 

Caso não haja a devida atuação do Congresso Nacional, com a correção dos rumos desse novo modelo de tributação, ajustando-o aos princípios constitucionais, de modo a assegurar, por exemplo, a aplicação da regra anterior aos rendimentos acumulados, teremos mais uma frente de litigiosidade fiscal para o ano de 2018.

 

No que concerne à solução de conflitos, um foro adequado seriam os conselhos de contribuintes, órgãos de julgamento administrativos que podem resolvê-los definitivamente quando decidem pela improcedência das exigências tributárias, pois decisões da administração fiscal judicante, favoráveis aos particulares, não são revisáveis pelo Judiciário. Ocorre que a experiência recente — referimo-nos aqui especificamente à CSRF —, tem revelado a total e absoluta falta de interesse em resolver as questões favoravelmente aos particulares, especialmente nos litígios envolvendo questões de grande potencial arrecadatório, como são os casos de dedução da amortização do ágio em reorganizações societárias e da tributação de lucros de controladas no exterior, ou de efeitos multiplicadores, já que aplicáveis a um universo amplo de contribuintes, tais como as discussões a respeito da não aplicação da “trava” de 30% para compensação de prejuízos fiscais no ano da extinção da pessoa jurídica ou da impossibilidade de cumulação de multas de lançamento de ofício e isolada pela não realização de antecipações.

 

Os exemplos de discussões de efeitos multiplicadores vinham sendo solucionados em favor dos particulares pela própria CSRF, e a jurisprudência foi alterada, pelo voto de qualidade, justamente para forçar o contribuinte a levar a discussão ao Poder Judiciário, dando ao Fisco uma nova oportunidade de discussão das matérias. Já as discussões de grande potencial arrecadatório, em que havia decisões de turmas do Carf favoráveis aos particulares, vêm sendo uma a uma levadas, por vezes com malabarismos interpretativos para forçar o cabimento dos recursos especiais fazendários, à apreciação da CSRF que invariavelmente lhes dá provimento pelo voto de qualidade.

 

Ou seja, as questões tributárias que poderiam ser decididas pelo Carf em termos definitivos agora vão ser mais uma fonte de congestionamento do Poder Judiciário, já que cada derrota do contribuinte corresponde potencialmente a mais um processo judicial. E mais. O uso abusivo do voto de qualidade acabou suscitando dúvidas jurídicas quando a legitimidade de um sistema em que o empate acaba sendo favorável ao Fisco, contrariando o artigo 112 do CTN que acolhe o princípio do in dubio contra fiscum. Trata-se de questão que já se encontra em discussão no Judiciário e em relação à qual o Congresso Nacional vem tentando criar um regramento específico para o tema, mas encontra forte resistência fazendária.

 

O atual protagonismo da CSRF, quase sempre unânime nas causas fazendárias, exige que se encontrem novos espaços de mediação entre Fisco contribuinte, antes de se ter que recorrer ao “tribunal-hospital”. Por que não recorrer à solução da arbitragem tributária, instituto com grande sucesso em Portugal e que de longa data vem sendo defendido pelo colega de coluna professor Heleno Torres[2]? Esse caminho se nos afigura ser um rumo potencialmente interessante para a solução de conflitos tributários. Já é chegada a hora de experimentá-lo.

 

O certo é que iniciativas para revisão do modelo de contencioso tributário são imperativas para desafogar o Judiciário. É preciso investir em prevenção de litígios; é fundamental investir em soluções alternativas de conflitos, o Estado precisa reduzir seu grau de litigância e aceitar as vitórias dos contribuintes. A continuar como está o sistema seguirá sendo esse descalabro de instabilidade, incerteza e insegurança.

 

***

Triste constatar, como já dizia a bela letra de Índios, clássica canção da Legião Urbana, de meados dos anos 1980, que nossa imagem refletida no espelho é de um mundo doente e que já estamos tão acostumados que nem conseguimos chorar.

 

O Brasil está gravemente doente, isso é certo, mas há cura. O mais recente sinal de recuperação foi o encarceramento de toda a cúpula da organização criminosa que governou o estado do Rio de Janeiro. Anima a mobilização da sociedade civil não vinculada a partidos políticos em “movimentos”, manifestações da democracia direta que me fazem lembrar as lições de Bobbio do início da faculdade. Está evidente — e isso é um fenômeno mundial — que a intermediação partidária para a representação popular é um instrumento obsoleto e viciado. Vamos ver o que 2018 nos reserva: mais alguns anos internados — ao menos fora do CTI — ou a tão sonhada alta hospitalar.


Autor:  é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

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