Falar sobre tributação digital implica em discorrer, necessariamente, sobre um fenômeno que se expande no mundo, que é o da economia digital. A tecnologia sempre teve um papel transformador das relações humanas ao longo da história.
No entanto, nas últimas décadas, as mudanças tecnológicas ocorrem em uma velocidade assustadoramente alta, com reflexos em todas as áreas de conhecimento humano: economia, política, relações interpessoais, meio ambiente, etc.
A revolução tecnológica digital, iniciada a partir da década de 60 do século XX, também chamada de terceira revolução industrial, dá início à chamada era da informação, em que processos analógicos são substituídos por digitais. O computador, o telefone celular e a internet são símbolos das transformações das últimas décadas que vêm revolucionando a forma de nos relacionarmos, produzirmos e consumirmos.
Bauman, grande pensador da modernidade, cunhou a expressão modernidade líquida para definir o tempo em que vivemos. A modernidade líquida caracteriza-se pela fluidez das relações e mudanças constantes de nossa era.
A incerteza é a marca desses tempos. Alicerces antigos da sociedade encontram-se abalados, e os seus paradigmas encontram-se em mutação constante. Um desses alicerces em xeque é o Poder Soberano dos Estados.
A alta tecnologia digital leva a globalização das relações econômicas a um outro patamar, pulverizando as fronteiras políticas no que diz respeito ao controle sobre as trocas e relações comerciais econômicas.
As big techs – grandes empresas de tecnologia da informação, tais como Google, Uber, Netflix, Facebook, Airbnb, entre outras – operam por praticamente todo o globo terrestre com pouca ou nenhuma necessidade de estrutura física local, e, salvo raras exceções, com pouco ou nenhum controle dos Estados Nacionais sobre suas atividades.
A atividade de tributação se depara com os desafios desses tempos líquidos. A mudança de uma matriz econômica outrora exclusivamente física e sólida, centrada em deslocamentos materiais de bens, para uma economia cada vez mais digital, calcada em bens incorpóreos e sem dependência de bases físicas para operar implica em necessárias reflexões a fim de se manter hígido o princípio da capacidade contributiva, promovendo-se justiça fiscal.
No presente artigo se discute sobre as estratégias fiscais que vêm sendo discutidas mundo a fora para possibilitar a tributação efetiva e justa da nova economia digital.
A evasão de bases tributáveis e de lucros
O FMI[1] definiu a economia digital, em um sentido restrito, como plataformas online e atividades que delas derivam, e, em um sentido mais amplo, todas as atividades que se utilizam de dados digitais como sendo parte da economia digital. Ainda disse que nos países mais modernos, representa a totalidade de sua economia.
Além da inovação tecnológica advinda dessa era digital, o mundo se expande, e grandes corporações estendem seus braços ao longo de várias jurisdições como que um cardápio tributário de dieta low tax.
A intangibilidade de uma nova economia digitalizada em um mercado digital que contém produtos digitais, cria um novo desafio para as administrações tributárias das diversas soberanias, qual seja, tributar bens incorpóreos em operações praticadas por empresas virtuais sediadas muitas vezes em paraísos fiscais.
A OCDE vem deste 2014 em conjunto com o G20 tratando da temática BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que cuida da evasão de bases tributáveis e de lucros, dispondo de 15 planos de ação para uma mudança no trato mundial acerca da fiscalidade. O plano número 1 trata exatamente daquilo que discorreremos neste trabalho, os desafios fiscais da economia digital[2].
A grande preocupação que têm os países sobre os novos market places digitais, ou seja, os balcões eletrônicos pela via digital, é que geralmente as empresas que oferecem seus produtos e serviços se encontram além das fronteiras do país onde estão contidos os consumidores, as chamadas operações crossborders.
O principal elemento de conexão vigente hoje, que depende da existência de um estabelecimento permanente para a fixação da competência tributária, não está conseguindo alcançar estas operações, dado que apenas uma comunicação de dados, um cartão de crédito internacional e um clique são necessários para se concretizar uma compra.
O lucro, assim, é gerado para a empresa fornecedora, que recolhe seu tributo apenas onde estiver presencialmente localizada. Muitas vezes pela grande mobilidade que o mundo digital oferece, e por brechas nas legislações de alguns países, são escolhidas como sedes de recolhimento de tributos jurisdições com pouca ou nenhuma tributação.
O imposto sobre serviços digitais e o critério da presença digital significativa
Apesar dos trabalhos em conjunto dos países envolvidos no plano BEPS para a discussão das melhores medidas, até o momento não há consenso sobre qual adotar. Para solucionar a situação, alguns países tentam resolver o problema de forma doméstica e unilateral. A criação do ISD (Imposto sobre Serviços Digitais) tem sido implementada em alguns países europeus e tem como base de incidência a receita[3].
Não é coincidência o surgimento dessas iniciativas no continente europeu, pois, como esclarece Marcus Abraham, naquele continente há um enorme mercado consumidor desse tipo de serviço, embora as Bigs Techs concentrem-se nos EUA[4].
O ISD não é considerado imposto sobre a renda porque não é qualquer receita auferida em operações digitais que dá ensejo ao tributo, mas apenas aquelas com habitualidade e que envolvam o mercado consumidor local. O serviço digital tributado também deve conter um valor adicionado intrínseco e a capacidade de prestar os serviços com presença física ser pequena ou nula.
O Parlamento Europeu aprovou[5] uma alteração do paradigma de conexão, que atualmente é definido pelo estabelecimento permanente[6], na maioria dos países, para a possibilidade de cobrança desta nova exação. O critério da presença física passa a dar lugar a “presença digital significativa”, criando assim um contexto para autorizar a cobrança e assim atualizar o critério de alocação de tributos entre as diversas soberanias.
A presença digital significativa teria vários critérios[7], que, quando aferidos, trariam a possibilidade de cobrança de tributos com base no princípio da fonte (fonte de pagamento ou fonte de produção).
Estes critérios podem se basear na quantidade de contratos fechados naquele país de consumo, critério de receita auferida através da plataforma digital de alguma empresa, critério do uso de domínio de determinado país, do uso de sites locais ou plataformas locais, em idioma local, para oferecer produtos e serviços, uso de ferramentas de pagamentos locais, critério do número de usuários logados mensalmente, critério dos dados coletados de usuários e critério do lucro presumido digital.
A importância do estabelecimento de novos critérios e institutos para o alcance da economia digital advém da necessidade da promoção de uma maior justiça fiscal, tanto em termos de efetivo recolhimento de imposto pelas empresas, quanto na sua correta alocação entre os países envolvidos nas operações.
É preciso eliminar-se gradativamente a possibilidade de uma empresa digital se aproveitar da riqueza de um país sem nele contribuir para o desenvolvimento de suas instituições. Este tipo de situação acarreta a infração aos princípios da isonomia internacional, da capacidade contributiva, e da teoria do benefício.
A fluidez da economia digital requer mecanismos multilaterais entre os países, em uma cooperação internacional no tocante à troca de informações, compatibilização jurídica e cooperação na fiscalização.
A solução, assim, não pode ser encontrada de forma unilateral. A falta de consenso, porém, entre os países para resolver estas questões fez com que alguns países percorressem este caminho.
Além da cooperação e debate internacionais entre os representantes estatais e de organismos internacionais, é preciso também chamar aqueles que seriam os destinatários destas mesmas leis, os seus sujeitos passivos, para sua legitimidade e verificação de viabilidade.
As empresas nacionais e multinacionais deveriam também estar atuando nestes fóruns para ajudar a solucionar de forma satisfatória esta nova problemática do mundo digital que surge.
Necessário, por fim, refletirmos sobre o alerta de Bauman: “não há soluções locais para problemas globais, embora sejam locais as soluções procuradas com avidez, ainda que em vão, pelas instituições políticas existentes, as únicas que até agora inventamos e de que dispomos coletivamente”[8].
Referências
[1] Disponível em: <https://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2018/04/03/022818-measuring-the-digital-economy>. Acesso em 29 de dezembro de 2020.
[2] Disponível em: <https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9789264218789-en.pdf?expires=1609189870&id=id&accname=guest&checksum=F3A96913A2E159EC966A2C6053B179D9>. Acesso em 29 de dezembro de 2020.
[3] Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2018-0523_PT.pdf>, página 6. Acesso em 28 de dezembro de 2020. Ver também, disponível em: <https://sovos.com/pt-br/espanha-aprova-imposto-sobre-servicos-digitais/>. Acesso em 10 de janeiro de 2021.
[4] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/reforma-tributaria-sem-levar-em-conta-a-tributacao-digital-06082020>. Acesso em 10 de janeiro de 2021.
[5] Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2018-0523_PT.pdf>, página 3-4. Acesso em 28 de dezembro de 2020.
[6] Seu conceito encontra-se no artigo 5º c/c art. 7º da Convenção Modelo da OCDE. Disponível em:<https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/convencoes_evitar_dupla_tributacao/convencoes_tabelas_doclib/Documents/CDT_Modelo_OCDE.pdf>. Acesso em 28 de dezembro de 2020.
[7] TEIXEIRA, Alexandre Alkmim, PLANO BEPS, Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2019, p. 168/169.
[8] BAUMAN, Zygmunt. AMOR LÍQUIDO: SOBRE A FRAGILIDADE DOS LAÇOS HUMANOS. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 163.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-liquidez-da-economia-digital-e-o-fascinio-pelas-dietas-low-tax-23012021