Vários meios de comunicação noticiaram que “lideranças” do Congresso pretendem reduzir em até 20% os salários de servidores, enquanto durar a crise do novo coronavírus. É vergonhosa a suposta discussão legislativa. Impressiona o uso do momento atual para a retomada de velhas estratégias, especialmente quando o caos criado por uma pandemia demonstra a necessidade de valorização dos serviços públicos e não o contrário. Basta a lembrança dos artigos declarados inconstitucionais na Lei de Responsabilidade Fiscal e as propostas legislativas em tramitação para ver que a redução remuneratória, antes de solução, é uma obsessão irracional.
Não é de hoje que os pregadores do minimalismo de Estado se deparam com oposições naturais, como a do coronavírus. É fácil reclamar de uma (infra)estrutura pública de serviços que é menor que a dos Países Liberais, conforme estudos da OCDE. É conveniente para o projeto de poucos falsear a necessidade do Estado, até que a realidade se impõe. O Brasil, país subdesenvolvido, pretende combater o que não existe e deixar crescer o desamparo aos mais vulneráveis.
A redução remuneratória do servidor público, antes de ser uma violação constitucional, é a antítese dos fundamentos e objetivos/princípios essenciais do Estado Democrático brasileiro, aqueles que constam desde o Preâmbulo da Constituição da República de 1988 até o seu artigo 4º, como: dignidade da pessoa humana; soberania; cidadania; construção de uma sociedade livre e solidária; erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nada disso é preservado no desmonte do serviço público, pois são regiões que não interessam à iniciativa privada, focadas apenas no lucro. Tanto é verdade que, repita-se (conforme estudos da OCDE) que o número de servidores públicos em relação ao total de trabalhadores é maior em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, marcos do liberalismo moderno. E estamos abaixo da média internacional.
A única fonte de estabilidade na relação entre Estado e cidadão é a Constituição, a mesma que, em seu artigo 37, inciso XV, impede a redução dos rendimentos do servidor público. A mesma que garante direitos sociais, entre eles a saúde, seriamente ameaçada pelo coronavírus e pela pouca atenção que o Executivo a ela dispensaria, se a presidência da república e o ministério da economia (sim, minúsculos) fossem a única voz. Desestruturar o Estado é sinônimo de garantia da adequada proteção a direitos sociais? Como, quando se evidencia a falácia da austeridade, pode-se cogitar reduzir a remuneração dos que mais são demandados para a continuidade da civilização?
Recentemente, quando da proposta de redução de jornada com diminuição salarial na Lei de Responsabilidade Fiscal, o Supremo Tribunal Federal (ADI 2.238) declarou sua inconstitucionalidade por violação a cláusula pétrea. Para quem não sabe, as cláusulas pétreas não podem ser alteradas nem por emenda constitucional e compreendem elementos jurídicos que diferenciam a sociedade da selvageria. O efeito de sua quebra é a queda da primeira peça de dominó, em que tudo se torna possível, até arrancar as pessoas de suas casas, sem justificativa, para se apropriar de suas vidas e de seus bens.
Nesse cenário, o endividamento público brasileiro é curioso. Não é o maior no plano internacional (Japão tem uma dívida muito superior, por exemplo), mas está entre os maiores juros (Japão está entre os menores). Ao que parece, o problema é de negociação e de transparência, porque há muito se evita uma regulamentação e um auditória dessa dívida. Em qualquer cenário, a remuneração dos agentes públicos não é o vilão.
Logo, qualquer tentativa de redução remuneratória, além de inconstitucional, é uma irresponsabilidade que será combatida em seus devidos lugares, mas se espera que este momento de pandemia sirva de lição para que propostas de desqualificação e redução do serviço público não passem do que são: falsas soluções que agravam o problema.
Fonte: Por Rudi Cassel