A pandemia tem demandado respostas rápidas para situações nada triviais. Como forma de minimizar as repercussões socioeconômicas do problema, o Estado utiliza diversos mecanismos da sua caixa de ferramentas. Entre elas, a extrafiscalidade. Com efeito, rígidas normas de Direito Financeiro foram flexibilizadas para sua utilização. Mas estamos a falar de flexibilização relativa. Nos municípios e Distrito Federal, por exemplo, deixar de aplicar a alíquota mínima do ISSQN não configura contra-ataque eficiente aos efeitos economicamente nefastos do vírus, mas falta de probidade do agente político.
Inicialmente, os limites das alíquotas municipais nunca despertaram preocupações das normas nacionais, quanto mais constitucionais. A primeira vez que alíquota máxima do ISSQN foi instituída no Brasil se deu de forma precaríssima: adveio do Ato Complementar nº 34, de 1967 (artigo 9°), que logo em seguida foi revogado pela Carta de 1967 (artigo 189). A atual Constituição — por meio da EC nº 03/1993 — prescreveu à lei complementar o dever fixar as alíquotas máximas para os tributos sobre dos serviços de qualquer natureza.
Partindo do dispositivo constitucional (artigo 156, §3°, inciso I), a LC nº 100/99 alterou o Decreto-Lei nº 406, de 1968, e fixou a alíquota máxima do ISSQN em 5% (artigo 4°). A preocupação constitucional foi rapidamente intensificada e a EC nº 37/02 positivou a obrigação de a lei complementar também fixar as alíquotas mínimas daquele tributo — para além de “regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.
Ainda que transitoriamente, a alíquota mínima do imposto municipal foi a única constitucionalmente estabelecida (artigo 88, ADCT) até edição de lei complementar que disciplinasse percentual mínimo. Tal incumbência coube à LC nº 116/03, que, sem alteração quantitativa, determinou os limites mínimo e máximo da alíquota do ISSQN — respectivamente em 2% e 5%. Contudo, desde que instituída, a ratio das alíquotas impostas era sensivelmente distinta.
A alíquota máxima visou a inibir arrecadação predatória. Diferentemente, a fixação de alíquota mínima objetivou trazer profilaxia à guerra fiscal entre os municípios. Por isso, a mesma EC que a concebeu (nº 37/02) vedou também a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais que resultassem na sua inobservância (artigo 88, ADCT). Mas o resultado foi insatisfatório diante da ausência de sanção pela inobservância ao preceito.
Visando a corrigir tal equívoco, a Lei Complementar nº 157/2016 criou sanção para o desrespeito da inobservância da alíquota mínima, não na lei de regência do ISS (LC 116/03), mas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92). Ou seja, a sanção por desrespeito ao mínimo legal coíbe a prática de guerra fiscal, mas vai além, pois adjetiva — e pune — como ímprobo o agente público.
Os benefícios fiscais, por si só, já despertavam a atenção da Lei 8.429/92 na luta contra a falta de probidade administrativa (artigo 10, inciso VII). Contudo, o legislador entendeu por bem tipificar conduta específica com intuito de garantir a observância do limite mínimo da alíquota do ISSQN (artigo 10-A), em seção própria (II-A), o que denota o interesse da aplicação de tipos sancionadores distintos. Caso contrário, seriam atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário. Nesse ponto, reside ponto de atenção em tempos pandêmicos.
Como em 2008, o governo optou por movimentos tímidos de desoneração fiscal, como redução a zero da alíquota do IOF por 90 dias (Decreto nº 10.305/20) e do IPI — até 30 de setembro e apenas para equipamentos e insumos ligados ao enfrentamento da Covid-19 (Decreto nº 10.285/20). A maioria dos incentivos foi meros diferimentos. Em suma, movimentos de incentivos fiscais quase estéreis. Afinal, como aqui advertido, aumento de gasto público produz resultado mais certo do que renúncia fiscal. Aquele é direcionado com resultado praticamente certo, este, no máximo, possível.
Desonerar significa renunciar a receita e, ordinariamente, obriga a demonstrar ausência de impacto orçamentário. E isso não é simples. Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/00), pressupõe estimativa de impacto orçamentário-financeiro feito a partir da renúncia e dos dois exercícios seguintes. Acresce necessidade de considerá-las nas metas da Lei Orçamentária Anual (LOA) e justificar ausência de impacto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Tudo dentro de prazos e limites legalmente determinados.
Porém, desde o Decreto Legislativo nº 06/2020, a exceção se sobrepôs. Em razão do reconhecimento do estado de calamidade pública, o governo federal afastou a incidência dos artigos 9° e 65 da LRF e a necessidade de cumprimento das metas da administração federal traçada na LOA de 2020. Mesmo identificando incompatibilidades na verificação bimestral, não se promoverá medidas para reconduzir a execução orçamentária planejada —especialmente a limitação de empenho.
A medida foi replicada com maior conforto quando o Supremo se manifestou, dando interpretação conforme aos dispositivos da LRF e da LOA de 2020 para afastar as exigências em prol do combate à Covid-19 (ADI 6.357) — condicionada até a cessação da pandemia. Ainda assim, aos municípios e Distrito Federal, redução da alíquota de ISS — ressalvados os serviços que o próprio dispositivo excetua (artigo 8°-A, §1°, LC 116/03) — nãoé opção. A observância da alíquota mínima de 2% continua.
A decretação de estado de calamidade afastou, em parte, a incidência da LRF, mas não da LIA. Com efeito, isenções de ISSQN concedidas por municípios ou pelo Distrito Federal que destoarem do artigo 8°-A, §1°, LC 116/03, quando praticadas com dolo, ensejarão a aplicação das sanções previstas no dispositivo: perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos e multa civil de até três vezes o valor do benefício concedido. Ausente a intenção, poderá ser considerado causa de prejuízo ao erário — única modalidade de ato ímprobo que pode ser praticada sob a forma culposa.
Portanto, até o momento, a única possibilidade de concessão de incentivos relacionados ao ISS é o diferimento, ou seja, mera postergação do pagamento do tributo devido. Há precedente: em 3 de abril, o Comitê Gestor do Simples Nacional postergou por 90 dias o recolhimento do ISSQN (e do ICMS) apurado no âmbito da LC 123/2006 (Resolução CGSN nº 154). Não se trata do melhor caminho, mas, excetuando novas movimentações legislativas ou manifestações do próprio Supremo, seria o único confiável.
Autores: Matheus Ferri é graduando em Direito pela PUC-PR, bolsista da instituição para o Pibic e estagiário no escritório XVBM Advogados.
Estevan Pietro é advogado no Escritório XVBM Advogados e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/pietro-ferri-iss-renuncias-fiscais-pandemia