Aproximando-se o início do ano de 2024 muitas indagações surgem por conta da aprovação da reforma tributária no que diz respeito, em especial, ao consumo, a tão debatida Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45/19), convertida na Emenda Constitucional nº 132, em 15/12/2023, assim finalizando as mais significativas mudanças no sistema tributário nacional desde a EC 18/65, depois regulada pelo Código Tributário Nacional. Não se faz necessária, neste momento, qualquer digressão sobre o histórico da reforma, ora aprovada, que se iniciou no governo anterior a partir de um modelo desenhado nos gabinetes do Ministério da Fazenda, em conjunto com professores que atuaram na qualidade de consultores de governo.
A reforma tributária, desde a redemocratização do país, era uma ambição de todos os governos, às vezes apenas sob o viés da simplificação, mais do que de mudanças radicais. Os louros dessa vitória acabaram atribuídos ao atual governo.
Do ponto de vista de seu modelo final após muito debate prevaleceu, no caso dos tributos sobre o consumo, uma visão muito próxima de um tributo de valor agregado (VAT), nos moldes adotados pela União Europeia, contudo na modalidade dita dual, ou seja, com competência repartida entre dois entes tributantes: à União cabe instituir e cobrar a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e aos estados e Distrito Federal cabe instituir e cobrar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Com a aprovação do IBS deixam de existir o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), nesse último caso com a perda pelo município de qualquer competência de tributação do consumo, o que é questionável em uma Federação.
Fica mantido o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), contudo com suas alíquotas de incidência reduzidas a zero, exceto em relação aos produtos industrializados na Zona Franca de Manaus. A redução a zero é uma aposta no futuro, pois sua mudança pode ser tentada a qualquer tempo. Aprovou-se, também, a criação do Imposto Seletivo (IS), de competência da União, incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, o qual substitui, parcialmente, o IPI vedando-se, porém, sua incidência cumulativa com esse tributo.
No que tange às contribuições sociais atualmente exigidas, Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e PIS/Cofins – Importação, todas elas são substituídas pela CBS.
Assim desenhado o novo modelo de tributação surge a questão mais importante, ou seja, uma vez aprovadas tais mudanças, o que representarão elas para os contribuintes e para o Poder Público no dia 1°.01.2024? Há de fato um aceno de melhora ou redução no encargo tributário, em curto prazo ou, de outro lado, há alguma ameaça que legitime o temor de alguns no sentido de incremento no encargo tributário, também em curto prazo? Antes de obtermos qualquer resposta, analisaremos alguns fatos dessa reforma.
Cabe destacar que a Emenda Constitucional n 132 foi aprovada de forma surpreendentemente apressada, inclusive incentivada pelo Poder Executivo como se fora a panaceia para os problemas fiscais do País. Esqueceram-se, aqueles que se dizem responsáveis por tal reforma, de alertar os demais brasileiros, aproximadamente 215 milhões pelo Censo de 2021, que de acordo com nossa Carta Maior somente se paga/cobra tributos desde que tenham sido editadas as leis complementares, quando exigidas, contemplando todos os elementos previstos no art. 146, da Constituição Federal e, ainda assim, somente depois de instituídos pelos poderes competentes, para tanto, na estrita observância das referidas leis complementares.
Como consequência, apenas depois de editado todo esse conjunto normativo, que se calcula em mais de 70 leis complementares, fora leis ordinárias e atos infralegais, é que se poderá dar concretude a essa mudança no sistema tributário. Dirão alguns que de acordo com a EC 132/23 o Poder Executivo deverá encaminhar ao Congresso Nacional, em até 180 dias após a sua promulgação, todos os projetos de lei para regulamentar a reforma tributária. Seria esse comando suficiente para compelir o Congresso?
Já tivemos oportunidade, aqui nesta ConJur, de afirmar que muitas das leis complementares previstas na Constituição, de 1988, até os dias de hoje, sequer foram editadas, razão relevante para se ter cuidado nas afirmativas que ora são feitas sobre a suposta conclusão ou aplicação da reforma tributária. O açodamento, acima referido, pode indicar ausência de adequada reflexão sobre tema que afetará os brasileiros de forma ampla e daqui para a frente.
No que tange a efeitos imediatos da EC n 132, a despeito de estar vigente desde sua publicação, a primeira resposta objetiva é que nada ocorrerá, pois somente em 2027 as contribuições sociais hoje devidas (PIS, Cofins, PIS/Cofins importação), deixarão de ser exigidas, enquanto em 2033, deixarão de ser integralmente exigidos o ICMS e o ISS. Ou seja, respondendo à questão proposta, não há nada a fazer de imediato, exceto acompanhar a regulação da matéria e é na regulação que interesses variados se manifestam, o que exige atenção e cautela.
Assim como os estudiosos do tema tributário veem debatendo e refletindo sobre essa reforma, é de se esperar o mesmo comportamento por parte de nossos congressistas, contudo, há um indicador concreto de fragilidade desse debate quando a Câmara deixou de observar o disposto no artigo 202, § 6°, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Ricd), o qual determina que a proposta de emenda constitucional seja submetida a dois turnos de discussão e votação, com interstício de cinco sessões. Ou seja, esse dispositivo nasceu do aprendizado, ao longo do tempo, demonstrando que temas versando sobre alterações na Constituição exigem, além de debate, amadurecimento por parte dos representantes do povo, razão pela qual há de haver um período para a devida reflexão dos congressistas, sob pena de serem gerados equívocos e prejuízos para os cidadãos e para a nação.
De forma diversa, o que ocorreu na tramitação da PEC 45/19, é que se fez aprovar o Requerimento nº 2.150/2023, dos líderes de partidos, no qual se solicitou a quebra de interstício de cinco sessões, como previsto no Ricd, para sua apreciação. Ao dia seguinte, em 7/7/2023, a PEC 45/19 já estava aprovada em dois turnos pela Câmara e seguia para o Senado.
Muitos autores de nomeada já vem identificando a hoje EC nº 132 como “disruptiva”, adjetivo derivado da palavra disrupção que os dicionários definem como ruptura, em uma primeira acepção, mas que, em uma segunda acepção também identifica o fenômeno elétrico caracterizado pelo restabelecimento da corrente elétrica que causa faíscas e intenso gasto de energia acumulada. A rigor, indaga-se: em qual dessas acepções deve ser enquadrada a EC n. 132, quando tratada como disruptiva? Certamente que é uma ruptura com os padrões até hoje adotados pelos tributos sobre o consumo no país, mas, ao mesmo tempo, também se amolda ao fenômeno físico acima descrito, pois sua implementação gerará faíscas e intensos gastos de energia acumulada.
De fato, o IBS substitui diversos tributos sobre o consumo, em todos os níveis da Federação, mas é criado com muitas similaridades com eles, similaridades essas já longamente debatidas nos tribunais, assim formando riquíssima jurisprudência nas cortes superiores. Tudo isso será apenas história ou as lições do passado nos servirão? O que acontecerá com todo esse material?
Apenas para exemplificar veja-se a redação do artigo 156-A, § 1°, inciso VIII, da Constituição, após a EC nº 132, o qual dispõe ser esse “tributo não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar, nas hipóteses nela previstas”. Ou seja, será que o tema de crédito dos bens de uso ou consumo remanesce, na expressão uso/consumo pessoal, sem solução desde o século passado, repassando-se, novamente, a responsabilidade à lei complementar sobre a matéria?
A tributação no local de destino de bens e serviços, em oposição à tributação no local de sua origem, funda-se na escolha do legislador competente entre tributar o consumo ou a produção. Ou seja, tributar na origem significa onerar a produção, o que agrava o custo para o produtor ou o prestador, alegando muitos que serve como desestímulo ao empreendedorismo, temática retomada pelos criadores desse novo modelo. Outra corrente assegura que a tributação no destino está vinculada à jurisdição onde se verificou riqueza para consumir, logo onde o tributo deve ser pago. Até hoje o Brasil tributa bens e serviços na origem, logo no local onde são produzidos/prestados e, a partir do novo modelo constitucional, vai se tributar o consumo, como regra geral. De toda sorte, indaga-se: a inversão no modelo sempre se fará com tranquilidade? E a quem beneficiará? Só o tempo poderá dar a prova do alegado.
O conceito de consumo corrente na legislação tributária que antecede à EC nº 132 é muito amplo e inclui a industrialização, típica produção, na forma da Lei nº 4502/64, que na origem dispunha sobre o revogado Imposto de Consumo, renomeado pelo Decreto — Lei nº 34/66, para IPI, mantendo-se, porém, essa norma, destinada a tributar o consumo, em sua inteireza. O que se conclui aqui é que o fato econômico que origina a tributação pelo IPI também poderia ser o consumo, em nossa tradição jurídica. De fato, considerando-se que no modelo do IPI são produtos industrializados aqueles compreendidos na tabela anexa à Lei nº 4502/64, é possível encontrar itens que passam longe de serem industrializados, como é o caso do Capítulo I, Animais vivos e produtos do reino animal, todos não tributados/NT pelo IPI, em contrapartida ao Capítulo II, que trata de Carnes e miudezas, comestíveis, tributadas à alíquota zero, visto que recebem um tratamento específico apenas para sua conservação ou para facilitar o consumo (refrigeração, desossamento, etc.) ficando clara a diferença entre a tributação da produção (IPI) e a tributação do consumo.
O Capítulo 25 da Tabela do IPI resume esse cenário ao tratar de certos produtos minerais (sal; enxofre; terras e pedras; gesso, cal e cimento) não tributando o produto mineral apenas extraído e preparado para o transporte, daquele refinado ou fraturado para uso subsequente, neste último caso sujeito a alíquota zero ou outra maior, pois trata-se de produto industrializado.
A respeito dessas especificidades se construiu imensa jurisprudência, judicial e administrativa com recurso, inclusive, a especialistas, no que tange à classificação dos bens, se produtos ou não. Isso parece significar que IPI e IBS partem de conceitos comuns, o consumo, e a experiência com o IPI deve ser considerada no momento de se editar a lei complementar do IBS. A indagação que fica é se prevalecerá esse tipo de distinção construída pela jurisprudência para o IPI, no caso do IBS. Por tais razões é que a sociedade deve participar ativamente da elaboração das normas que orientarão a tributação pelo IBS.
Outro aspecto do IVA que nasceu na discussão da EC nº 132 e que merece ser comentado, pois é dado como grande ganho da reforma, é um suposto alinhamento com a comunidade internacional que adota, no caso do consumo de bens e serviços, um sistema não cumulativo, tributando apenas o valor agregado e atribuindo crédito nas aquisições de insumos, o dito IVA. Não se generalize esse dado, pois se tomarmos a maior economia do mundo, os Estados Unidos, seus critérios de tributação do consumo sempre foram absolutamente diversos do resto do mundo, como é o caso brasileiro até a edição da EC nº 132, o que não parece vir em detrimento daquele país. Portanto a afirmativa dos criadores e incentivadores do IBS, de que ele estaria orientado por um modelo internacionalmente adotado, sob o argumento de que o modelo brasileiro que se começa a abandonar, introduzido pela EC nº 18/65, é anacrônico e não se coaduna com os parâmetros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) parece discutível.
Assim, seguindo no exame do modelo norte-americano, apenas para se ter um parâmetro, observa-se que ele não contempla um IVA e, como regra, não onera a produção. Assim, em nível federal tributa o consumo pelos Excises Taxes gravando combustíveis, bebidas alcoolicas, veículos, dentre outros. Esse tributo tem como característica principal ser monofásico, não dando direito a crédito. Além disso, o consumo é, também, tributado pelos Estados, através do Sales Tax, que onera as vendas a consumidor final. Esse argumento, portanto, pouco ajuda na divulgação do novo modelo tributário.
A imprensa noticiou que a OCDE emitiu uma breve nota sobre a reforma tributária no Brasil, reproduzindo trecho dessa manifestação que, entretanto, apenas enfatiza que deve ser evitada a sedução das isenções ou taxas reduzidas para alguns bens e serviços, visto que elas pouco contribuem para o desenvolvimento. Não se pode afirmar que o conteúdo dessa nota, como divulgado, implique qualquer tipo de concordância dessa entidade à reforma tributária que se acabou de aprovar, se não que um alerta no que tange à concessão de benefícios, o que não parece ter sido acatado, uma vez que nosso modelo acabou aceitando regimes específicos para certos segmentos da economia, alguns plenamente justificáveis, outros discutíveis. A mensagem da OCDE orienta, isso sim, no sentido de que tais benefícios (isenções e taxas reduzidas de IVA) não se mostrariam como a forma mais eficaz de alcançar os objetivos pretendidos com as políticas públicas.
Em suma, respondendo à indagação formulada no que respeita ao que fazer no dia 1/1/2024, a resposta é apenas que cada contribuinte se organize para acompanhar e discutir a legislação complementar que deve ser produzida, pois ela será a chave do sucesso da reforma tributária que se aprovou. O açodamento com vistas à arrecadação conduz à elaboração de leis questionáveis, ao aumento da litigiosidade, preocupando eventuais investidores. Desde já nos organizemos como um grupo de vigília permanente para intervir na elaboração desse conjunto normativo.