Reconhecida a ocorrência de estado de calamidade pública pelos governos federal, estaduais e municipais, por conta da pandemia da Covid-19, caminhamos, agora, para a possível retomada da economia com a abertura gradual de alguns estabelecimentos comerciais e de serviços.
Entretanto, dando um pequeno passo atrás, sabe-se que, embora a interrupção total ou parcial de certas atividades comerciais tenha constituído, de um lado, medida necessária para evitar maior alastramento do novo vírus, de outro, acarretou sensível redução de receitas, afetando, pois, o fluxo de caixa das empresas, obstando, assim, o cumprimento de diversas obrigações.
É certo que o governo federal anunciou medidas para amenizar os impactos econômicos decorrentes da pandemia. Mas é sabido que tais medidas, de certo modo, foram tímidas e que, de fato, não forneceram uma base de apoio que conferisse um mínimo de expectativa de manutenção, ou, até mesmo, de recuperação da saúde financeira das empresas pós-pandemia.
Em vista disso, teses objetivando a suspensão temporária dos prazos de recolhimento de tributos federais, estaduais e municipais e de parcelas de programas de parcelamento começaram a ser levadas à apreciação do Judiciário, tendo-se notícia, até então, de diversas decisões liminares acolhendo, em princípio, o pleito dos contribuintes, e outras, não.
Dignas de aplausos são as decisões judiciais proferidas que, compreendendo o momento excepcional em que vive o Brasil e o mundo, reconheceram a necessidade da adoção de medidas urgentes e efetivas em prol da manutenção da empresa e dos empregos.
Por outro lado, a par de alguns juízos terem se posicionado pela inviabilidade da prorrogação do prazo de pagamento dos tributos, duas decisões merecem aqui destaque: as pronunciadas pelas presidências do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Pedido de Suspensão de Liminares nº 2066138-17.2020.8.26.0000) e do Supremo Tribunal Federal (Suspensão de Segurança nº 5.363/SP), as quais determinaram a suspensão dos efeitos de diversas liminares que autorizaram a postergação do prazo de recolhimento de tributos estaduais.
Os entendimentos ali adotados, com o devido respeito, são equívocos, pois, antes do alegado risco de lesão à ordem pública, as liminares proferidas pelas instâncias ordinárias, tal como exposto acima, além de primarem pela preservação da empresa e dos empregos, com inegável caráter social, atuaram diante da inquestionável omissão dos Poderes Executivo e Legislativo quanto à adoção de medidas tributárias efetivas para mitigação dos impactos negativos decorrentes da pandemia e da quarentena decretada pelos Estados.
De fato, seria improvável — e como, de fato, foi — que os contribuintes, preocupados não só com a situação atual, mas, principalmente, com o porvir da crise provocada pela pandemia, permanecessem estáticos aguardando uma posição concreta do poder público acerca de ações efetivas na área tributária.
Assim, ausente uma postura mais concreta dos Poderes Executivo e Legislativo em prol da preservação dos valores fundamentais da ordem econômica (artigo 170, CF/88), expondo ao risco a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1°, incisos III e IV, CF/88), perfeitamente necessária seria a intervenção do Poder Judiciário como ator legitimado constitucionalmente para o saneamento de tal omissão, cumprindo a nobre função de pacificar conflitos, mas antes de tudo, sua missão precípua de garantir os direitos fundamentais, pela observância dos magnos princípios explícitos e implícitos previstos em nossa Constituição.
A despeito da discussão se a prorrogação da data de vencimento de tributos se trata de moratória ou não, fato é que a suspensão das liminares, determinada pelas referidas decisões proferidas pelas presidências daquelas cortes, por certo, agrava a situação e o desespero dos contribuintes, já que não se vislumbra, concretamente, a alegada organização harmônica e coerente do Poder Executivo, na adoção de medidas fiscais necessárias para o enfrentamento da atual crise.
Ademais, ainda que as decisões liminares que deferiram a prorrogação das datas de recolhimento de tributos possam, realmente, interferir na redução da receita derivada do Estado, também é verdadeiro que este mesmo Estado, ao contrário dos contribuintes, detém maiores condições para financiar a máquina administrativa por outros meios.
Por tudo que se apresenta, o cenário que se avizinha, não só no Brasil, mas no mundo, aparenta ser devastador.
A par de alguns noticiários terem enfatizado os efeitos econômicos imediatos da pandemia sobre as médias e pequenas empresas, é certo que as grandes companhias também estão sofrendo forte impacto, especialmente aquelas detentoras de menor liquidez por conta do acesso mais restrito de crédito no mercado.
Dito isso, vem à tona uma questão fundamental: pós-pandemia, as empresas terão, de fato, capacidade financeira para honrar seus compromissos, especialmente, os tributários?
Certamente, a opção de muitos empresários (talvez a mais coerente) será colocar o pagamento de tributos no fim da lista das suas obrigações, primando pela quitação da folha de salários, dos pagamentos aos fornecedores e demais custos necessários, viabilizadores do reinício das suas atividades e da retomada da geração de receitas.
No entanto, postergar o cumprimento de obrigações tributárias acarretará, obviamente, ônus aos contribuintes consistentes na exigência de juros e de multa, até porque, tratando-se de obrigação legal, o seu descumprimento implica, via de regra, na imposição de sanção. E, exercendo a autoridade fiscal atividade vinculada e obrigatória, o lançamento da penalidade pecuniária será inevitável.
Ademais, o entendimento firmado pelo STF sobre a possibilidade de os sócios responderem por crime de apropriação indébita tributária constitui também preocupação, não só por possíveis inadimplências ocorridas durante a pandemia, mas mesmo quando, retomadas as atividades comerciais, o empresário, por certo período de tempo e, por necessidade de se reerguer e se manter, optar por cumprir outros compromissos em detrimento dos tributários.
Assim, diante desse cenário e das consequências da pandemia, seria razoável penalizar o contribuinte por imputação de sanções pecuniárias em razão da sua inadimplência, diga-se, ainda que praticada de forma consciente, mas, exclusivamente, pelo propósito de sobreviver e se reerguer, ou seja, de continuar sua atividade depois desta crise que assola o Brasil e o mundo?
Aqui vertemos nossa atenção às multas moratórias (decorrentes do atraso no pagamento do tributo) e às punitivas isoladas (imputadas quando do descumprimento de obrigações acessórias sem repercussão no valor do tributo), via de regra, aplicadas quando injustificada a inadimplência do contribuinte, considerando que, ante as circunstâncias, ambas não deveriam ser exigidas.
Isso porque, sendo fato público e notório (artigo 374, inciso I, do CPC/2015) a determinação de suspensão total ou parcial das atividades empresariais de diversos segmentos, o que, inquestionavelmente, acarretou sensível redução —até mesmo, inexistência — de faturamento das empresas, vale dizer, tudo por conta do novo coronavírus (constituindo, assim, caso de força maior de que trata o artigo 393 e parágrafo único do Código Civil), não seria — ou não será— razoável penalizar os contribuintes com imputação de multas por descumprimento, frise-se, justificado de uma dada obrigação tributária (principal ou acessória).
Ainda que se pense no caráter objetivo da aplicação das sanções pecuniárias, não há como ignorar, por outro lado, o elemento subjetivo da conduta do contribuinte, tal como afirmado pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso nos autos do Agravo de Instrumento nº 727.872/RS, decisão esta que, embora desenvolvida em contexto distinto do atual e a partir de uma situação fática diversa, pode servir de parâmetro inicial para a circunstância de que estamos tratando neste texto.
Ora, se em casos de simples equívocos permite-se a análise do elemento subjetivo da conduta para quantificação da pena pecuniária ali fixada, mais justificável ainda será tal sopesamento quando se estiver diante da necessária preservação da empresa, dos empregos e, via de consequência, da própria dignidade da pessoa humana, pois, conforme leciona Renato Lopes Becho, a tributação, antes de mera técnica, deve ser um ato do Estado que respeite os valores que dão dignidade ao homem.
Obviamente, não se pretende aqui defender que a inadimplência injustificada, ou seja, ocasionada fora das circunstâncias que vivenciamos hoje, com inegáveis reflexos negativos futuros por conta da Covid-19, seja merecedora de eventual isenção de penalidades.
Quer-se, a bem da verdade, realçar uma realidade posta logo à frente: a necessidade de revisitação de certos conceitos até então lidos e interpretados a partir de circunstâncias totalmente diferentes da que estamos vivenciando hoje.
Assim, a prevalência e, até mesmo, a superação de determinadas visões tradicionais sobre dados princípios, constituem posturas que, inegavelmente, deverão ser exigidas do poder público, especialmente, diante de uma realidade nunca antes vivida na história contemporânea, cujo rastro, aliás, é inevitável.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-mai-31/nomura-sancoes-pecuniarias-tributarias-pos-pandemia
1 comentário
Acredito que a análise do elemento subjetivo da conduta para quantificação da pena pecuniária, deveria ser considerada tão apenas durante o período da pandemia e pós-pandemia. Períodos anteriores, devem ser analisados pelo método convencional. Porém, sabe-se que muitos contribuintes irão alegar a pandemia como justificativa de impossibilidade de honrar com essas obrigações tributárias de exercícios anteriores.
Entretanto, na sua maioria, houve a abstenção de recolhimento dos tributos na época por ser uma conduta cultural, trazendo a baila, o entendimento firmado pelo STF sobre a possibilidade de os sócios responderem por crime de apropriação indébita tributária.