Assim como ocorreu em 2019, o ano de 2020 já se inicia com constantes debates em relação às reformas estruturais que vem sendo propostas pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional.
Embora a aprovação da Reforma da Previdência (promulgada por meio da Emenda Constitucional n. 103/2019, publicada em 13/11/2019) tenha dominado os noticiários ao longo do ano passado, já se pode observar a tendência de que as discussões legislativas agora se voltem à Reforma Tributária, especialmente encorpada pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 45/2019, apresentada perante a Câmara dos Deputados por iniciativa do Deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e elaborada com base nos estudos realizados pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF).
Neste turbilhão de mudanças que vem sendo estudadas e debatidas, tem-se deixado em “segundo plano” as propostas formuladas pelo Governo Federal por meio do Plano Mais Brasil, instrumentalizado por três distintas PECs incorporadas pelo Senado Federal, quais sejam: a PEC Emergencial (PEC 186/2019); a PEC dos Fundos Públicos (PEC 187/2019); e a PEC do Pacto Federativo (PEC n. 188/2019).
As alterações propostas por meio das referidas PECs objetivam combater o inegável cenário atual de grave crise fiscal em todos os âmbitos do Estado Brasileiro.
Na visão do Governo Federal, o combate ao mau uso e a desvios de recursos não seria suficiente para aplacar o déficit fiscal hoje suportado pelo Executivo, sendo necessário promover mudanças estruturais ainda mais profundas nas regras que orientam a própria formulação dos orçamentos públicos, de forma a evitar o crescimento das despesas públicas, de modo geral.
Se aprovadas, as PECs promoverão mudanças sensíveis na sistemática atual de gestão das contas públicas, podendo-se destacar a permissão para a adoção de mecanismos permanentes ou emergenciais de ajuste fiscal, o controle da criação e da manutenção de fundos públicos e a contenção de gastos oriundos de alterações legislativas e de decisões judiciais.
Esta terceira alteração destacada é de extrema relevância, à medida que, se aprovada a PEC do Pacto Federativo (PEC n. 188/2019) nos termos em que proposta, observar-se-á a mitigação de efeitos de decisões judiciais onerosas ao Poder Executivo, já que quaisquer decisões judiciais que impliquem em novos custos “somente serão cumpridas quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária” (art. 167, §9°).
A preocupação do Governo Federal com os julgamentos conduzidos pelo Poder Judiciário tem sido cada vez mais evidente ao longo dos últimos anos: o Portal JOTA publicou reportagens em série para evidenciar alguns dos processos relevantes que vem sendo acompanhados de perto pelo Ministério da Economia, dentre os quais se destaca o Recurso Extraordinário (RE) 574.076 (Tema 69 do Supremo Tribunal Federal), “a maior causa tributária na mais alta corte do país”, que desde 2016 tem dominado os holofotes em matéria tributária.
Tomando este paradigmático julgamento como exemplo, cujo passivo estimado pelo Governo Federal é bilionário, qual seria o efeito da aprovação da PEC do Pacto Federativo? Em suma, todos os contribuintes teriam de aguardar a disposição de recursos orçamentários para que pudessem usufruir das decisões favoráveis que porventura obtivessem junto ao Judiciário.
Veja-se a seriedade do que se desenha por meio desta PEC: apesar de se lograrem vencedores depois de décadas de discussões judiciais, os direitos reconhecidos dos contribuintes seriam vulnerados em prol do ajuste fiscal desejado pelo Governo Federal.
Em outras palavras, os contribuintes seriam prejudicados apesar de terem obtido a decretação de inconstitucionalidade das cobranças perpetradas pelo Governo Federal ao longo de todos estes anos, o que apenas se agrava quando se leva em consideração que o próprio Governo Federal se beneficiou efetivamente destas mesmas cobranças majoradas, arrecadando mais recursos (do que poderia) pela inobservância dos limites constitucionais impostos ao exercício de seu poder de tributar.
Primeiramente, dever-se-ia exigir que o Poder Executivo observasse de fato a Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), não apenas para cumprir os diversos limites nela previstos com vistas a evitar o crescimento desordenado dos gastos públicos, mas principalmente porque já se impõe que o Executivo avalie, contabilize, reserve recursos para arcar com passivos advindos de decisões judiciais e preveja antecipadamente as providências que deverão ser tomadas caso estes riscos sejam concretizados (art. 4°, §3°, da LRF).
Em segundo lugar, como se poderia conciliar esta contenção reativa, tão conveniente ao Poder Executivo, com o cenário atual de constantes abusos e inconstitucionalidades perpetrados, por este mesmo Poder Executivo, em detrimento dos direitos constitucionais assegurados a todos os contribuintes brasileiros?
Não há como se admitir medidas como essa enquanto o Brasil é identificado como o “campeão mundial de litígios tributários”, cujo contencioso administrativo em 2018 representava 73% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro – sendo que 16,4%[1]eram relativos apenas ao contencioso administrativo federal.
E tudo isto sem se considerar que não são todos os contribuintes que ajuízam demandas judiciais assim que iniciadas discussões como a travada no RE 574.076, não lhes sendo sequer garantido o direito de recuperar em sua integralidade o indébito que efetivamente suportaram em razão destas cobranças ilegítimas.
Não se está a menosprezar o alarmante cenário atual de déficit fiscal: é evidente que se fazem necessárias medidas que efetivamente permitam maior controle dos gastos públicos, um dos principais fundamentos propulsores da Reforma da Previdência aprovada em 2019.
Contudo, tal contenção não pode ser feita às custas dos contribuintes brasileiros, especialmente em detrimento de um dos pilares fundacionais do Estado Democrático de Direito, qual seja o seu direito de acesso ao Poder Judiciário, atualmente positivado no art. 5°, inciso XXXV, da Constituição de 1988, para evitar lesão ou ameaça de lesão a outros direitos que também lhes são constitucionalmente garantidos.
Ainda que as medidas de ajuste fiscal sejam essenciais para o bom funcionamento do Poder Executivo (em todas as suas esferas), não se pode conceber medidas que vulnerem as bases inegociáveis do Estado Democrático de Direito Brasileiro, mesmo quando seja conveniente a sua adoção.
Por este mesmo motivo, a eventual aprovação desta disposição contida na PEC do Pacto Federativo certamente seria objeto de controvérsias, especialmente por se tratar o acesso ao Judiciário de cláusula pétrea que não estaria sujeita a emenda constitucional (art. 60, §4°, inciso IV, da Constituição de 1988) – o que poderia até mesmo levar esta discussão a apreciação direta pelo STF.
[1] Messias, Lorreine; Longo, Larissa; Vasconcelos, Breno. Brasil, campeão de litígios tributários. VALOR Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/brasil-campeao-mundial-de-litigios-tributarios.ghtml. Publicado em 13 nov. 2019. Acesso em 12 fev. 2020.