Prova do dolo e responsabilidade tributária.

por Grupo Editores Blog.

 

A existência de uma infração é condição necessária ao desencadeamento da responsabilidade pessoal do administrador, mas não suficiente. Para que identifiquemos o fato típico e antijurídico previsto no art. 135 do CTN, a conduta do agente deve ser necessariamente dolosa.

 

Ocorre que nem todos os acontecimentos podem ser traduzidos em palavras. Exemplo típico é da intenção do agente na prática do ilícito. Como prová-la, se ele não a tornou intersubjetiva? Como identificar, em situações não extremas, se houve dolo ou culpa? O sujeito quis lesar o Fisco e aproveitar-se do produto do ilícito ou lesou como consequência de um mero erro?

 

Dolo é a vontade consciente de praticar a conduta típica, e, com isso, obter determinado resultado, ou seja, de realizar os elementos constantes do tipo legal (in casu, fraude ou sonegação) ou assumir o risco de produzi-lo (previsibilidade do resultado).

 

É somente a partir da identificação do dolo que algumas condutas podem ser tipificadas como criminosas (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90), que administradores devem ser responsabilizados pelos tributos devidos em decorrência de fatos jurídicos tributários praticados pelas pessoas jurídicas (art. 135 do CTN), que o prazo decadencial é diferenciado (parte final do § 4º do art. 150 do CTN) e que multas qualificadas são aplicadas (art. 44, § 1º, da Lei nº 9.430/96). Portanto, o sistema do direito positivo requer que o aplicador da norma decida pela existência ou não do dolo.

 

Mas como ter sucesso nessa tarefa?

 

Duas considerações são importantes. A primeira é que somente o empírico pode ser provado, porque diz respeito ao campo da experiência. Se a premissa é verdadeira, o dolo, por não se subsumir a tal condição, não se sujeita à prova.

 

A segunda é que, mesmo sem ser passível de prova, por imposição legal o julgador precisa decidir com base na existência, ou não, do dolo.

 

Diante disso, a solução que propomos é a de que, nos casos em que o dolo precisar ser comprovado, a prova não recaia sobre a intenção do agente propriamente dita, mas sobre os fatos adjacentes à fraude, tais como frequência, voluntariedade, complexidade e consequências, bem como sobre as características do agente que o praticou. Chamemos esse conjunto de “dinâmica da fraude”.

 

Com isso, a prova do dolo terá por objeto a sucessão de atos que resultaram na fraude e a maneira pela qual eles foram executados, a partir da análise do conjunto probatório envolvendo os documentos contábeis e fiscais do contribuinte, os desprovidos de natureza fiscal e contábil (tais como e-mails, correspondências, contratos), os documentos emitidos por terceiros (DIRRF, extratos bancários, notas fiscais) e a prova emprestada e a testemunhal.

 

Dependendo do resultado dessa avaliação, far-se-á possível dizer, com o mínimo grau de segurança que o direito requer, se o administrador agiu com dolo.

 

Passemos agora a analisar alguns fatos que, em nosso entendimento, contribuem fortemente para a tipificação da fraude, por traduzirem, isolada ou conjuntamente, e com graus de gravidade diversos (mais ou menos graves), a frequência (erro habitual ou esporádico), a voluntariedade (possibilidade de agir da forma lícita), a complexidade (dinâmica na execução do ato) e as consequências do ato (destino do dinheiro não utilizado para pagamento do tributo), bem como as características do agente que o praticou (idade, grau de instrução, experiência).

 

  1. Interposta pessoa

 

O primeiro e mais contundente dos fatos tipificadores da fraude é a demonstração da utilização, pelo sujeito passivo, de interposta pessoa, considerada como sendo a pessoa física ou jurídica que oculta, esconde, encobre o verdadeiro interessado no negócio. É aquela que se envolve em determinado ato jurídico em nome próprio, mas no interesse de outrem, substituindo-o e encobrindo-o.

 

É assim denominada por “interpor-se” entre o sujeito ativo e o “real” sujeito passivo, com o objetivo central de evitar que este último integre a relação jurídica tributária.

 

Não temos dúvidas de que a constatação da existência de interposta pessoa é prova do dolo. Prova-se a interposição (i) pela confissão do fiscalizado, (ii) pela declaração da interposta pessoa, que geralmente é pessoa com menor grau de instrução e condições financeiras menos favorecidas, (iii) pela origem do numerário e o destino que se dá aos rendimentos e (iv) pela comparação entre os rendimentos da interposta pessoa e a capacidade econômica do real titular.

 

  1. Reiteração da conduta

 

Entendemos que a reiteração de conduta é elemento importante a ser observado para a tipificação da fraude e, junto com outras provas, propicia convencimento ao julgador.

 

Errar de forma esporádica é possível e, isoladamente, não revela má-fé do sujeito. Já a conduta repetitiva é forte indício da intenção de fraudar.

 

Somente situações muito peculiares devem ser excepcionadas, assim entendidas aquelas em que seja inequívoco o despreparo do contribuinte (característica do agente) diante da complexidade da apuração de certos tributos. Mas elas nos parecem raras; a regra é de que a reiteração de conduta seja indício de fraude.

 

O problema que se coloca, a partir dessa conclusão, é a definição de “conduta reiterada”. Quantas vezes o ilícito deve ser praticado para que o fato assuma esse foro?

 

Reiteração é conceito indeterminado. O erro esporádico – uma ou duas vezes em largo espaço de tempo – não se consubstancia numa conduta reiterada. Se, em contrapartida, tal erro ocorrer ao longo de todo o ano, restará configurada a reiteração. Entretanto, esses são exemplos extremos e facilmente classificáveis como reiterados ou não. O problema reside no intervalo: quatro ou cinco vezes ao ano é conduta reiterada?

 

A resposta só pode ser dada pelo contexto, em que todas as demais variáveis mencionadas acima também serão avaliadas. Isoladamente, e de forma não contextualizada, não é possível responder.

 

Todo esse nosso entendimento não é unânime. Muitos consideram que a reiteração é critério demasiadamente subjetivo e, por isso, deve ser afastado. Outro argumento para reforçar essa linha é de que a conduta é ou não fraudulenta independentemente de sua reiteração: se não for fraudulenta, a reiteração não tem o condão de requalificá-la e vice-versa (nesse sentido, vide o Acórdão nº 103-23.461, da antiga Terceira Câmara do 1º Conselho de Contribuintes).

 

O tema exige cuidado. Primeiro porque é pressuposto da reiteração da conduta que ela seja fraudulenta. Se não for assim, perde-se a razão de ser da própria análise. Segundo porque a subjetividade é inerente à aplicação de todos os enunciados, variando apenas a sua graduação. E terceiro e último porque a reiteração não é fato isolado, mas deve ser necessariamente somado aos demais, para a construção do convencimento motivado do julgador.

 

  1. Informações divergentes aos Fiscos federal, estadual e municipal

 

A divergência de informações prestadas aos diferentes órgãos arrecadatórios é simples de ser demonstrada, e, a depender do conteúdo da falha, da reiteração da conduta e de suas consequências, é indicadora seguro de dolo. Exemplo atual é a troca de informações entre o Fisco Federal e Estadual, no que diz respeito às doações realizadas pelo contribuinte e por ele indicadas em sua declaração de imposto sobre a renda (variação patrimonial), mas não informadas à Fazenda do Estado (o ato jurídico constituiu-se em fato gerador do imposto sobre doações e deveria ser informado e tributado).

 

A jurisprudência do CARF, com a qual concordamos, é majoritária no sentido de reconhecer a fraude pelo conjunto probatório, ou seja, não exclusivamente pela divergência das informações prestadas aos diferentes Fiscos, mas por ela somada à reiteração desta conduta. Isso se dá porque pode ocorrer de, eventualmente, ter havido apenas um erro no envio da informação, retificado com base nos documentos que deram suporte ao lançamento (sobre isso, vide o Acórdão n. 107-08.814).

 

  1. Presunção como prova da fraude

 

A presunção de ocorrência do fato jurídico tributário em sentido estrito não é suficiente para tipificar a fraude. Sua tipificação dependerá da forma com que o ilícito foi praticado.

 

Para facilitar a compreensão, nada melhor que a força do exemplo. A existência de depósito bancário de origem não identificada é indício de omissão de receitas. Por se tratar de presunção relativa, a prova a ser efetuada pela autoridade fiscal é (i) da existência de depósito, (ii) da não contabilização do depósito bancário e/ou não inclusão na apuração do crédito tributário e (iii) da titularidade do numerário. O administrado deverá ser intimado para informar a origem do dinheiro, e, se não o fizer, a presunção deve ser aceita.

 

Os fatos acima narrados (i, ii e iii), se esporádicos, não provam o dolo e são suficientes apenas para a constituição do crédito tributário. Já eles, somados à reincidência e à interposta pessoa, provam que o contribuinte agiu de forma dolosa.

 

  1. Documento fiscal inidôneo e falsidade de informações

 

A irregularidade ínsita ao documento inidôneo não diz respeito à ilegalidade da operação, e sim ao documento que a formaliza ou que não a formaliza. Documento inidôneo é o que não atende às determinações legalmente previstas, seja quanto à forma, seja quanto ao seu conteúdo e ao seu uso. Para que seja apto a tipificar a fraude, as irregularidades deverão ser graves e não meramente formais.

 

Como exemplo podemos citar os seguintes documentos: (i) de arrecadação apresentado pelo contribuinte, cuja autenticação não foi reconhecida pelo agente arrecadador, nem o registro eletrônico correspondente é encontrado na base de arrecadação da Administração Tributária; (ii) que contiver declaração falsa, ou estiver adulterado ou preenchido de forma a não permitir identificar os elementos da operação ou prestação; (iii) que contiver valores diferentes nas diversas vias e (iv) que possuir, em relação a outro documento do contribuinte, o mesmo número de ordem e a mesma série e subsérie.

 

Uma vez comprovada a utilização do documento inidôneo pelo contribuinte, deve-se reconhecer o indício de fraude na conduta, cabendo ao sujeito passivo a demonstração de boa-fé, sob pena de aplicação da multa qualificada.

 

A boa-fé será provada se o documento inidôneo não tiver sido utilizado com o escopo de evitar a ocorrência ou o conhecimento do fato jurídico, total ou parcialmente.

 

Por fim, no que diz respeito à falsidade de informações, falsa é a informação construída em desacordo com o que é possível saber dos eventos empíricos, tal como ocorre nas hipóteses em que se descobre a simulação.

 

As informações constantes da contabilidade do contribuinte são provas contundentes da falsidade das informações prestadas ao Fisco e, com isso, configuram o ilícito. A falsidade deverá ser considerada fraudulenta a depender do conteúdo da prova, somado aos demais elementos presentes no contexto.

 

  1. Simulação de negócios jurídicos

 

A simulação do negócio jurídico é disciplinada pelo art. 167 Código Civil e pode decorrer (i) da interposição de pessoas, (ii) da ocultação da verdade e (iii) da aposição de data falsa.

 

Como provas de simulação, podemos indicar (i) a não publicidade de atos, em contraposição a outros divulgados e que lhe alteram o conteúdo (alienação de participação societária não divulgada a credores), (ii) a proximidade de datas entre atos (operação “casa e separa”) e (iii) a diversidade inexplicada de valores entre atos (contratos com montantes diversos).

 

As simulações, ademais, podem ser absolutas ou relativas. Será absoluta se a declaração de vontade exprimir aparentemente um negócio jurídico, não sendo intenção das partes efetuar negócio algum. O ato ou negócio jurídico simplesmente não ocorreu. É meramente ilusório ou fictício, conforme nos ensina Washington de Barros Monteiro (in Curso de direito civil: parte geral. 41. ed., v. 1. atual. Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 256).

 

Já na simulação relativa há dois negócios jurídicos: um simulado, que não representa o querer das partes; e outro oculto, disfarçado. É também denominada dissimulação.

 

Assim, para concluir, o objeto da simulação é o que se apresenta ao mundo, ao passo que o da dissimulação é o que se esconde, embora, nos dois casos, a realidade física esteja sempre ocultada.


Autora: Maria Rita Ferragut
– Livre-docente pela USP. Mestre e Doutora pela PUC/SP. Autora dos livros Reponsabilidade tributária e o Código Civil de 2002, As provas e o direito tributário e Presunções no direito tributário. Professora do IBET e da PUC/COGEAE. Advogada em São Paulo.

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