Austeridade resulta em vida mais dura na Grã-Bretanha.

por Grupo Editores Blog.

 

PRESCOT, INGLATERRA – Uma caminhada por esta cidade no noroeste da Inglaterra é uma viagem pelos estragos causados pela era da austeridade na Grã-Bretanha. A antiga biblioteca foi fechada e transformada num lar luxuoso. O centro de diversão comunitária foi demolido, acabando com a piscina pública. O museu local hoje faz parte da história da cidade. A delegacia de polícia foi fechada.

 

Agora, o fim do verdejante parque Browns Field, no centro da cidade, pode estar próximo também. A câmara de vereadores o incluiu numa lista de 17 parques a serem vendidos aos incorporadores. “Todo mundo usa este parque”, disse Jackie Lewis, que criou dois filhos numa casa a apenas um quarteirão de distância. “Esse é, provavelmente, nosso último espaço comunitário. Foi eliminado um depois do outro. É difícil de engolir”.

 

Nos oito anos transcorridos desde que Londres começou a reduzir o apoio aos governos locais, o município de Knowsley, nos arredores de Liverpool, teve o orçamento reduzido pela metade. A própria Liverpool sofreu um corte de quase dois terços de seus recursos. Comunidades de boa parte da Grã-Bretanha tiveram perdas parecidas.

 

Para um país cuja história é marcada pela generosidade dos gastos públicos, a campanha de redução dos orçamentos, iniciada em 2010 pelo governo comandado pelo partido conservador, produziu uma mudança monumental na vida britânica. Muitos indicadores – criminalidade, vício em opioides, mortalidade infantil, pobreza na infância e número de pessoas sem-teto – apontam para uma deterioração na qualidade de vida.

 

Já em 2020, as reduções que estão em andamento devem produzir cortes nos programas britânicos de bem-estar social superiores a US$ 36 bilhões ao ano em relação a uma década atrás, ou mais de US$ 900 por ano para cada pessoa adulta em idade de trabalhar, de acordo com um relatório do Centro para a Pesquisa Econômica e Social Regional da Universidade Sheffield Hallam. Em Liverpool, as perdas chegarão a US$ 1.200 por ano por adulto, segundo o estudo.

 

As medidas de austeridade foram impostas em nome da eliminação dos déficits orçamentários, e, no ano passado, a Grã-Bretanha finalmente produziu um modesto superávit no orçamento. Mas os temores ligados ao Brexit, isto é, a já aprovada saída da Grã-Bretanha da União Europeia, vão manter o crescimento em baixa por anos a fio.

 

Faltando apenas oito meses para a saída do país do bloco, a primeira-ministra Theresa May luta para salvar seu governo. Na semana passada, dois membros do gabinete dela, o secretário do exterior, Boris Johnson, e David Davis, secretário encarregado do Brexit, renunciaram aos seus cargos en razão de sua abordagem, mostrando que são profundas as divisões mesmo entre aqueles que desejam sair da união. E muitos britânicos ainda se opõem à ideia dessa saída.

 

Ainda que todas as grandes economias do mundo estejam em expansão recentemente, a economia da Grã-Bretanha cresceu pouquíssimo nos primeiros três meses de 2018. O desemprego está pouco acima de 4% – o mais baixo desde 1975 – mas a maioria dos salários continua mais baixa do que há dez anos, levando-se em consideração a alta nos preços.

 

“O governo criou a miséria”, afirmou Barry Kushner, vereador trabalhista de Liverpool e membro da comissão para serviços infantis. “A austeridade nada teve a ver com questões econômicas. Foi tudo uma jogada para se livrar do estado de bem-estar social. A política está abandonando os mais vulneráveis”.

 

Líderes do Partido Conservador dizem que a austeridade foi motivada simplesmente pela aritmética. “Não houve um desejo de reduzir os gastos com os serviços públicos”, explicou Daniel Finkelstein, membro conservador da câmara dos lordes. “O problema é que tínhamos um imenso problema de déficit, e a dívida continuaria aumentando”.

 

Independentemente da sua lógica, a austeridade transformou a sociedade britânica, tornando-a mais diferente do restante da Europa Ocidental, com sua generosa rede de proteção social e seu ethos igualitário, e mais semelhante aos Estados Unidos, onde milhões carecem de atendimento de saúde e o desemprego pode desencadear uma espiral de miséria na vida de uma pessoa.

 

Assim como os EUA partiram da Grande Depressão dos anos 1930 para gerar o ímpeto para a construção de um sistema nacional de pensões, finalmente oferecendo atendimento de saúde aos idosos e aos pobres, a Grã-Bretanha reagiu ao trauma da Segunda Guerra Mundial com a construção de seu próprio estado de bem-estar social.

 

Os EUA vêm reduzindo gradualmente os benefícios desde a Revolução de Reagan nos anos 1980. A Grã-Bretanha fez recuar seus programas na mesma época, sob o comando de Margaret Thatcher.

 

Ainda assim, a rede de proteção do país continuou robusta pelos padrões mundiais. Então veio o pânico financeiro global de 2008 – o declínio mais acentuado desde a Grande Depressão – e o abandono final do estado de bem-estar social por parte da Grã-Bretanha.

 

A austeridade britânica tem sido uma lenta hemorragia, embora o estrago cumulativo tenha sido substancial. Os governos locais sofreram uma queda de aproximadamente um quinto na arrecadação desde 2010, depois de somados todos os impostos cobrados, de acordo com o Instituto de Estudos Fiscais de Londres.

 

Do ponto de vista nacional, os gastos com a força policial tiveram queda de 17% desde 2010, enquanto o número de policiais diminuiu 14%, segundo uma análise do Instituto para o Governo. Os gastos com a manutenção de ruas e estradas tiveram queda de mais de um quarto. O número de idosos recebendo atendimento proporcionado pelo governo que possibilita a eles permanecer em suas casas teve queda de aproximadamente um quarto.

 

Nos redutos da classe trabalhadora no norte da Inglaterra, em lugares como Liverpool, a austeridade é a vilã mais recente: os banqueiros de Londres criaram uma crise financeira, multiplicando sua riqueza por meio de uma jogatina irresponsável. Então, os políticos de Londres usaram os déficits orçamentários como pretexto para cortar os gastos com os pobres enquanto aprovam isenções fiscais para as grandes corporações. Uma inversão do trabalho de Robin Hood.

 

“É claramente um ataque contra a nossa classe”, disse Dave Kelly, ajudante de obras aposentado que mora em Kirkby, nos arredores de Liverpool. “É um ataque contra a nossa identidade. Todo o tecido da sociedade está se desfazendo”.

 

Atualmente, mais de um quarto dos cerca de 460 mil habitantes de Liverpool são considerados oficialmente pobres. As instituições públicas encarregadas de auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade estão se esforçando para funcionar após os cortes.

 

Ao longo dos últimos oito anos, o serviço de bombeiros e resgate de Merseyside, que atende a região expandida de Liverpool, fechou cinco quartéis, reduzindo a força de aproximadamente mil homens para 620. O comandante dos bombeiros, Dan Stephens, disse que as pessoas privadas dos benefícios deixam de pagar a conta de luz, e quando a eletricidade é cortada, recorrem às velas para iluminação, o que aumenta muito o risco de incêndio.

 

“Os efeitos diretos e indiretos são sentidos ao longo de todo o sistema”, explicou o comandante Stephens, que planeja renunciar ao cargo e se mudar para a Austrália.

 

Criada no bairro de Croxteth, em Liverpool, Emma Wilde, 31, é mãe solteira e depende dos benefícios do bem-estar social para sustentar a si e aos dois filhos. O pai dela, lavador de janelas aposentado, é inválido. Ela toma conta dele em período integral, dependendo da chamada bolsa de acompanhante terapêutico, que corresponde a cerca de US$ 85 por semana, e um benefício de renda complementar que chega a aproximadamente US$ 145 por mês.

 

Uma carta enviada por uma empresa particular contratada para administrar parte dos programas de bem-estar social do governo informou a Emma que ela estava sob investigação, acusada de viver com um companheiro – um dado que ela é obrigada a informar.

 

Emma insiste que vive apenas com os filhos. Mas enquanto a investigação está em andamento, o benefício dela está suspenso. “Todos estão na mesma situação agora”, diz Emma. “Simplesmente não temos o bastante para viver”.

 

A arquitetura política da Grã-Bretanha isola os responsáveis por impor a austeridade da ira daqueles que são objeto dela. Londres faz os cortes gerais, deixando que os políticos locais distribuam a dor.

 

Ao passar uma manhã com os frustrados moradores de Prescot, ouve-se falar pouco em Londres, ou mesmo na austeridade. As pessoas dirigem sua fúria para a câmara de vereadores de Knowsley e, especialmente, contra o homem que a comandou até o ano passado, Andy Moorhead. Eles o acusam de promover apressadamente a venda de Browns Field sem um processo de consulta comunitária.

 

Moorhead, 62 anos, parece um improvável vilão da austeridade. Dono de uma carreira política no Partido Trabalhista, ele disse: “Não entrei na política para tirar coisas das pessoas. Mas é necessário lidar com a realidade”.

 

A realidade é que Londres está acabando com os repasses aos governos locais, obrigando as câmaras de vereadores a sobreviver com os impostos prediais e comerciais. Para Moorhead, a equação fecha com o imperativo da venda de terras valiosas, em troca de uma concessão para a proteção dos demais parques e serviços restantes. “Temos que buscar o desenvolvimento”, explica. “No âmbito local, sou o vilão”.

 

Ele disse que os verdadeiros malfeitores são os mesmos de sempre: aponta para um quadro de Thatcher na parede atrás de si. Queixa-se dos banqueiros de Londres, que deixaram uma enorme bagunça para ele arrumar. “Ninguém deveria ter de passar por isso. Não no quinto país mais rico do mundo”.

 

Autor: Peter S. Goodman, The New York Times

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